4 poemas de Douglas Laurindo

4 poemas de Douglas Laurindo

por Natan Schäfer

24 de setembro de 2024

Douglas Laurindo (https://aboio.com.br/tag/douglas-laurindo/) mora em Manaus (AM). É professor de língua portuguesa, escreve, edita e se dedica à pesquisa. É autor de O limiar das fendas (https://editoraurutau.com/titulo/o-limiar-das-fendas) (Urutau, 2022).

Poema de cinco faces

Quando nasci, um anjo padrão
desses de Instagram
disse: vai, mona! ser oprimida na vida.

As casas espiam os pais
que correm atrás dos filhos
antes de expulsá-los:
esse é o fato.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu poderia morrer
se sabias que poderia ser morto.

Mundo mundo vasto mundo
se eu não fosse bicha,
qual seria a revolução?

Eu não devia te dizer
mas esse chão
essa Like a Virgin
botam a gente vivo como o diabo.

orar são

pai nosso que estais no céu,
tá osso
rogai por meus filhos
que sentem fome e frio
nem é preciso vir até nós
com todo o reino,
mas que seja feita,
só nessa época de vazante,
a vossa vontade,
assim na terra
como nos rios e igarapés
a macaxeira nos dai hoje,
perdoai as nossas descrenças
assim como a gente perdoa
o josé ladrão de bananeira
que me tem ofendido na igreja
e nos livrai de toda miséria
amém

O limiar das fendas

e como eu caminhasse
por aqueles pátios líquidos
de violência falada,
algo inesperado se via:

a fenda é o espaço
estreito no qual o fio
morte e vida termina.

a fenda é onde a luz
surge como lamparina
em oceano inexplorado.

dentro dela, recolhidos,
há enormes navegantes
com seus braços em desuso.

observam a imensidão
das águas, do céu, da alma
recostadas a mil vãos.

no submundo de feridas,
a ventania os obriga
ao abraço retilíneo.

não se cansam, porém,
de a cada jogada nova,
amontoarem-se todos:

há de se acreditar
no monte de vida que,
justo, romperá o limbo.

como estarei eu
farto de gigantes
ou de semideuses
se meu ritual
tão apoteótico
é ser teu mortal

Você acabou de ler uma seleção de poemas de O limiar das fendas (https://editoraurutau.com/titulo/o-limiar-das-fendas) (Urutau, 2022), livro de estreia de Douglas Laurindo (https://aboio.com.br/tag/douglas-laurindo/). Gostou dos poemas? Adquira-o clicando aqui (https://editoraurutau.com/titulo/o-limiar-das-fendas)

Mais sobre a obra

A poesia iconoclasta de Douglas Laurindo não propõe, simplesmente, a destruição das imagens sagradas da nossa cultura machista e heteronormativa. Sua operação é a da devoração criadora, com ressonâncias do sonho de Oswald de Andrade. Trata-se, porém, de uma antropofagia particular: devorar o interdito, o proibido, a normatividade e, nesse ato, devorar a si mesmo para recriar-se livre e potente, mesmo na interdição, entre as fendas.

Eleazar Venancio Carrias

Arte: The Harbor Light de L. Birge Harrison. (https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Harrison,_Birge_-_The_Harbor_Light_-_Google_Art_Project.jpg)

Natan Schäfer (Ibirama, 1991) é mestre em estudos literários pela Universidade Federal do Paraná e pela Université Lumière Lyon 2. Foi professor do curso de Bacharelado em Artes Visuais da UNESPAR, membro da Psychoanalytische Bibliothek Berlin e tradutor convidado nas residências Looren América Latina (Suíça) e Résidence Passa Porta (Bélgica). É autor de Taquaras (Contravento Editorial, 2022) e tradutor de, dentre outros, Por uma insubmissão poética (Sobinfluência, 2022) e La promenade de Vénus (Venus D’Ailleurs, 2022). Atualmente é responsável pela Contravento Editorial, também assinando a coluna "A Fresta" na página da editora Aboio. Além disso, dá a ver em desenhos, pinturas, escritos e fotografias algo da poesia que lhe atravessa.