4 poemas de Victor Prado

4 poemas de Victor Prado

por Victor Prado

24 de setembro de 2024

esta mentira que você me conta

esta mentira que você me conta
com a boca no meu pau
com a cabeça nos meus peitos
esta mentira que eu leio sem
pressa no seu pulso
esta mentira que eu te conto
com o dedo no cu
esta mentira que vai ganhando
corpo através das minhas pernas
esta mentira bamba que você
faz questão de jogar na minha cara
apagada acesa murcha triangular
com olheiras de quem não dorme
desde que acordou pela primeira vez
esta mentira que não contém nada
absolutamente absurdamente nada de verdade
de possibilidade de verdade
de qualquer verdade não nenhum fio de verdade
esta mentira que é apenas mentira
que você sabe que eu sei que você sabe
que eu sei que é mentira
mesmo quando me deparo com as pernas abertas
suadas tesas tesudas e esqueço de respirar
como lembrar de respirar pra que lembrar de respirar
se tenho o que mais me importa bem em cima do nariz
lambuzando o meu nariz guiando a minha língua
esta mentira que não esqueço nem agora
enquanto estou perdido entre saliva e
saliva esta mentira que continuará aqui entre nós dentro de nós
germe de uma outra mentira maior ainda menor ainda
de outra ordem de outra categoria de outra espécie
uma outra mentira igualmente pensada
igualmente ignorada esta mentira
você conta enquanto devora os lábios
se afoga nas virilhas se perde no rabo
bom é bom sim é bom quando é gostoso e é gostoso
mesmo com esta mentira que não me deixa esquecer
mesmo quando não consigo pensar em outra coisa
além da língua lambendo
além do corpo cavalgando do
corpo inteiro domando um outro corpo inteiro
mesmo quando a felicidade é mais do que apenas uma
palavra apropriada pelo marketing pra vender mais
pra consumirmos mais as melhores tristezas personalizadas
mesmo quando o prazer é prazeroso
esta mentira não larga a minha mão
não saí do meu pé parece que tem mentira no colchão
que tem mentira na roupa que tem mentira no prato no copo
que tem mentira atrás da orelha da minha orelha
porque atrás da sua orelha tem a minha língua
procurando o arrepio e agora eu poderia te dizer
adeus você que se vire com o pau duro
com a buceta inchada com a passividade flácida
é isso que esta mentira faz comigo
mesmo quando estamos jantando felicidade alegria contentamento
ou quando estamos vendo os heróis destruindo o mundo
pra salvar o mundo de coisas que não existem
esses heróis super-heróis não podem nunca
salvar o mundo das coisas que existem longe bem longe
tão longe do mundo dissimulado deles
tão longe quanto rio das pedras
esta mentira que eu nunca gostaria de aceitar como realidade
como realidade mais real do que a morte e do que a carne
sangrando sangrando sangrando dentro da dor
você sabe eu sei todo mundo sabe
todo mundo vê todo santo dia nos próprios olhos
que não não ficaremos bem se não colocarmos os senhores
e as senhoras do poder do dinheiro num mal-estar profundo
permanente indefensável irrevogável ininterrupto imediato
se não deixarmos de lado nossa posição subjetiva de desvalor
e os delírios de condomínio que nos obrigam a ficarmos em paz
sustentarmos a paz buscarmos a paz custe o que custar
mesmo que custe as nossas filhas os nossos filhos
as nossas almas os nossos corpos mesmo que custe o
o desespero o desamparo o desalento
é esta mentira a maior mentira de todas as mentiras que nos prende
à ideia de que não não podemos não devemos não temos condições
de darmos o troco o tapa os golpes no mesmo idioma violento terrível raivoso
dos gestos violentos terríveis raivosos
já é hora de superarmos esta mentira e aceitarmos que somos
barris de pólvora prontos pra explosão
agora é a hora fatal da sinceridade quando podemos devemos temos condições
de sufocarmos a mentira pelo colarinho e com as nossas próprias mãos
revidar

um clima como este

te ouvir foi viajar
novamente ao futuro

hoje acordei
por obrigação

(ontem também)

o clima é
bom para
quem veste
verde e amarelo

(nada está resolvido)

visto vermelho sangue

(mera coincidência)

em casa, brincávamos

I

em casa, brincávamos
de ler o silêncio, mas
nossa palidez era ruidosa

tínhamos uma tv que era
nosso quintal, mas éramos
econômicos com os canais,
como bem estabelece a
lei natural do controle:

manda quem pode,
obedece quem não tem nada
além do juízo

II

na escola, brincávamos
de dar tapas uns nas
mãos dos outros

gostávamos do vermelho
era bonito sentir que
estávamos vivos

escrevo porque quero

Feito em parceria com Gabriel Galbiatti Nunes.

a lembrança, porque quero
entrar em chamas
pelas paredes da memória
e sair de mim para me ver

estou aqui, entre as visões
e os papéis e sinto
minha boca cheia
com o sangue dos dias

viver ainda está proibido

ligo a torneira e cuspo

observo a água
levar o sangue até o esgoto

sinto o sangue da minha boca
se misturar ao sangue do mundo
na latrina do esquecimento

é o ruído, ouve?, que denuncia
o destino das palavras

quando foi isso? hoje, ontem?
veja! nos jornais, é quinta! e a glória
foi silenciada nesse mundo

o que, para além dos jornais, nos diz
que o mundo ainda existe? ou, ainda,
será que há chance de durar este mundo
que existe nos jornais?

viver ainda é proibido
se cada abraço é feito de tropeços

então, como ajustar o passo e seguir o caminho?
isto é, se os tropeços não nos fizerem
abraçar para sempre o chão com nossas bocas
cheias de areia, sono e febre

saio de casa e vou à padaria,
sozinhos às vezes acompanhado
saio de casa e vou ao passado,
busco nesse caminho encontrar outra forma
de aprender a não tropeçar

há algo vivo no passado, algo com músculos
e impulsos. lá conheço e sou conhecido.
também há ruínas ainda desabando
e atirando pedras frente ao nosso caminho.
brincamos de amarelinha, mas substituímos o céu
pela alegria, a única prova dos nove

na memória, pinço os sorrisos, ainda
sufocados pelas máscaras. na memória,
busco a narrativa dos nossos movimentos
e o lugar que a casa ocupa em mim

a memória é o fio de ariadne que prendo
a meus pés para que eu conheça a direção do futuro

e, de repente, a areia nos olhos começa
a se dissipar e vejo aquilo que faço

escrevo para reescrever a narrativa da história
para possuir a lembrança. porque possuir a lembrança
é possuir também o passado. e possuir o passado
é a única forma de inventar o presente, a única forma
de viabilizar o futuro que quero conhecer

possuir a lembrança, não pelo método conservador,
que ergue um altar ao que foi e o adora e o falseia

possuir a lembrança como quem dissipa o silêncio
com a dança, como quem vira o tempo com as mãos.

Victor Prado é leitor, escritor, diagramador e editor. Publicou Bastardo (Editora Urutau, 2016) (http://editoraurutau.com.br/titulo/bastardo) e um nome inabitável (Artefato Edições, 2017) (https://www.artefato.art.br/um-nome-inabitavel).