A cidade começa a desaparecer

A cidade começa a desaparecer

por Cinira D'alva

24 de setembro de 2024

1.
meia dúzia de casas
de João de barro
em uma só árvore
em manhã tristíssima
em salvador
cabana cabana
boa tarde boa tarde
tarde boa
entre
você e eu
em belém

2.
gostamos de árvores pássaros cachorros
e pedras
mais ainda
do oiti
do gavião
dos cachorros de rua
e das pequenas pedras de rio assentadas em linha reta como fez a lina bo bardi no solar
do unhão em salvador
também do modo como os periquitos abrem as vagens da acácia
como se fizessem amor

3.
a gente nãos
papel caneta fortaleza e lágrimas
depois ainda a gente mar
areia sol praia do futuro
tudo isso e a gente incapaz de desistir
te amo
e às vezes precisaria acordar sem bom dia
amo você e sua coleção de pensamentos dos outros
a gente pragas da biosfera
a gente prisioneiros da linguagem
a gente a mercê dos hormônios
eu te amo e às vezes não tolero distração
ir dormir sem boa noite e isso você não entenderia

4.
quando os cheiros formam tecido
chega-se
as vozes cariocas cheias de frituras e vícios
os parentes
na foto de infância
atrás do pai que tirava as fotos
tão alheio quanto eles ao espanto da menina
ou menino?
é menina os pais respondiam
por ela que não penteava o cabelo
voltou à casa da mãe de m.
um quase rio de janeiro
as vozes cariocas cheias de frituras e vícios
os parentes
tão alheios quanto ela ao sorriso do menino
na foto de infância
ou menina?
é menino a mãe talvez tenha dito
as mãozinhas cruzadas
sobre as pernas
o cabelo escovado

5.
na distância aproveite
a liberdade da pele
faça crescer pelos
escute o baque da flor
a insistência da imagem
arco faca cavalo
monte e atravesse
garimpo olho memória
mergulhe com a pedra na mão
quando voltar aproveite
o vermelho breve
que a distância guarda
de mim pra você
de você pra mim
reconheça
qual pássaro canta
em belém
qual canta em salvador

Cinira d’Alva é graduada em Arquitetura e Urbanismo. Atualmente explora a relação com a paisagem e a transcrição da experiência. Transcrever a experiência é uma coisa boa. Escrever enquanto nos tornamos. O texto é a máquina que se forma pra passar o recado do mundo. Quando entendeu a brincadeira percebeu que já vinha torcendo suas ferramentas em escrita. A arquitetura, o urbanismo, a cidade e a arte.