— Assassino! — sussurro para baixo da cama.
Lá, bem no fundo, atrás das malas, entre bolas de cabelo e poeira – e agora também entre pequenas penas cinza – lá onde a vassoura mal chega, Salém se entrincheirou com sua presa, enquanto acima dele, no colchão macio e com a máscara protegendo os olhos da luz da manhã, Larissa continua dormindo. Por isso estou falando baixinho.
— Seu psicopata-pervertido-sem-alma!
Óbvio que Salém pouco se importa com meus xingamentos sussurrados e continua cutucando sua vítima com o focinho, pegando-a na boca só para logo em seguida soltá-la novamente, jogando-a para cima e deixando-a cair. Com o bumbum levantado, o rabo serpenteando de um lado a outro e os olhos arregalados, se delicia com a agonia da pobre criatura em penas, com o poder sobre a vida e a morte. Está ronronando tão forte que a qualquer momento pode acordar a Larissa. Nesse momento, ele dá uma patada mais forte que faz o corpinho teso rodopiar sobre o chão até sair ao pé da cama. Só assim, à luz do sol, vejo de quem se trata. No susto me esqueço de qualquer consideração com minha bela adormecida:
— Ah, não, Salém! Logo ela? Como é que pode?
Larissa senta na cama de um golpe, ao mesmo tempo em que tira a máscara dos olhos:
— O que que foi?
— Salém matou Bárbara Schneider.
— O quê? Não acredito! Cadê você, seu assassino-psicopata-pervertido-sem-alma?
Cuidadosamente recolhemos o corpo sem vida do chão e o enterramos no jardim. Bem embaixo da pitangueira, entre cujos galhos, bem encaixadinho, estava seu ninho.
— O que será dos ovinhos? — Larissa enxuga uma lágrima.
— Olha, não sei aqui, mas lá na Alemanha os pais respondem pelos filhos…
— Verdade… Não tem outro jeito.
— Vamos nos revezar: duas horas eu, duas você.
Por isso, ao mesmo tempo em que escrevo este último adeus a Bárbara Schneider, estou chocando seus três ovinhos entre as coxas, enquanto Larissa está cuidando da criação de minhocas na composteira. É o mínimo que a gente pode fazer. Descanse em paz e não se preocupe, Dona Bárbara. Vai dar certo.
Natan Schäfer (Ibirama, 1991) é mestre em estudos literários pela Universidade Federal do Paraná e pela Université Lumière Lyon 2. Foi professor do curso de Bacharelado em Artes Visuais da UNESPAR, membro da Psychoanalytische Bibliothek Berlin e tradutor convidado nas residências Looren América Latina (Suíça) e Résidence Passa Porta (Bélgica). É autor de Taquaras (Contravento Editorial, 2022) e tradutor de, dentre outros, Por uma insubmissão poética (Sobinfluência, 2022) e La promenade de Vénus (Venus D’Ailleurs, 2022). Atualmente é responsável pela Contravento Editorial, também assinando a coluna "A Fresta" na página da editora Aboio. Além disso, dá a ver em desenhos, pinturas, escritos e fotografias algo da poesia que lhe atravessa.