Toda realidade que alcanço
Está no olhar do gato
Nas plantas regadas
Contorcidas atrás de sol
No chão limpo
Que piso sem meias
Existir como
Atributo de
Estar só
A delicadeza de um poema
Que manda a polícia se foder
As tarefas cronometradas
Na pretensão de sanidade
Tudo mais é irrealizado
Lembrança de uma lembrança
Dentro de uma lembrança
Como respirar o ar quente
Que sai da boca de um Minotauro
Sereias
Dos 18 aos 33 fui medicada para tristeza
E não há nada de errado nisso
Tirando o fato de que dos 18 aos 33 fui profundamente triste
Nunca entendi o que aconteceu
Se o problema era comigo
Mas ainda lembro
O gosto metálico
A sensação de pensar pior
Por anos a memória aerada
E a médica perguntando, quando engordei:
Prefere ser louca e linda ou gorda e feliz
Ignorando que é possível ser louca linda gorda e feliz
E ignorando que felicidade não é menos loucura que tristeza
Era uma mulher com poros grossos e cabelos finos
Uma mulher que pensa este tipo de coisa
Também lembro do tio que me segredou
Na família somos assim
Como se a tristeza e os modos estranhos fossem minha herança
Junto do nariz grande, da hipermetropia e da mania de falar gritando
Aos 30 anos cansei e pedi para uma estrela
Quero ser solar
O que obviamente não aconteceu
[mas existem formas piores de morrer de dentro pra fora]
O gato decidiu que hoje
Excepcionalmente
Dormirá sozinho
Faz cinco graus
Estou com os pés gelados
Mas o gato decidiu
Excepcionalmente
Hoje
Minha prece para as Mulheres
Minha tristeza chega com a chuva
Mas se anuncia pelo nada
Ancestral como a solidão da minha mãe
[e da mãe dela e da mãe dela e da mãe dela]
Sento na sala
Vazia
A mulher é sua Ítaca
Uma mancha de caneta no papel
Única estrela no centro de SP
A solidão não nasce mulher
Torna-se
Como tornou-se minha tia
Como tenho me tornado
Eu ela
É o vento que me enfia
Esses pedaços de nada
Uma buceta no peito
Herança da minha vó
[e da mãe dela e da mãe dela e da mãe dela]
Acompanho de longe o último homem que amei
[Não amo mais]
Enquanto faz nossa janta
Continua triste e teimoso
É o mesmo mas parece outro
Da última vez que nos vimos
Ainda o amava
Seu cheiro ficou em mim
Atrapalhando a vida
Só de lembrar [fraquejo]
Talvez ainda ame este homem que já amei
Que tinha a pele grossa e o cheiro forte
Mas era delicado e triste
Da última vez neste mesmo lugar
Preenchemos a sala com nossas conversas
E fizemos sexo com força e delicadeza
[Como o amei]
Hoje de manhã
Ele ainda era teimoso e triste
Mas não como antes
Seu cheiro já não era tão saboroso
E tudo parecia menor
Prometemos ser amigos
[não somos]
Sentamos para jantar
Eu
O homem que amei
O homem que não amo mais
Um me serve de vinho
Enquanto o outro me sorri
Dividimos
A mesa o quarto a dúvida
Nos olhamos em silêncio
O homem que já amei pede o sal
Foto de Luísa Machado (https://aboio.com.br/tag/luisa-machado/).
Mariana Messias escreve de maneira independente desde o final dos anos 90, tendo publicações on e offline e uma montagem para o teatro. Em 2020 publicou um ezine e participou do edital Arte como Respiro. Odeia escrever mini biografias (quem sabe tanto sobre si mesma?).