dejà vu
não escrevo sobre amor
escrevo sobre saudades
amor no pretérito
fotos já sem cor
um tempo findo
quem se foi não volta mais
resta o luto da perda
quem se foi não se volta mais a ser
talvez isso seja uma vitória
não sei dizer
ainda estou a caminho
vindo de lugares onde estive
bebo café frio
vejo a chuva
casais adolescentes
déjà vu tépidos
pai e mãe estão mais velhos
deixei de ser a menina deles
uma mosca pousa na mesa
um cão passa e se volta
escrevo sobre saudades
mas este momento
não entrará na soma
voyeuse
noite em Lisboa
fado distante
luzes em colinas
poucas pessoas na rua
o ar dentro do quarto
não é o de minha casa
abro uma fresta da cortina
de costas para mim
sozinho e sentado
um homem se masturba
um objeto de estudo
de interesse antropológico
eu o vejo no escuro
com a curiosidade mórbida
de quem vê uma aranha
agarrar uma mosca
o embaraço de quem via Kuro
o cão de minha infância
montar as pernas de meu pai
na frente das visitas
no som de vozes próximas
abandonei meu posto
o desenlace dessa cena
ignoro
sem danos
seguimos nossos caminhos
completos estranhos
adolescência
você é jovem e bonita
mas por que é tão triste?
perguntou a professora
para a aluna surpresa
mas ser jovem e bonita
é garantia de felicidade?
um amuleto contra tristeza?
jovens são tristes
o não vivido lhes dói
como farpas na carne
Desenho de Ariyoshi Kondo.
Karen Kazue Kawana é uma tradutora que escreve um pouco. Autora da coletânea de poemas Pequenas coisas (Bestiário), da novela O homem do jardim (Urutau) e do pseudo-renga Cancioneiro da desilusão (Urutau). Traduziu obras de escritores como Osamu Dazai, Kajii Motojirô, Yuriko Miyamoto, Toshiko Tamura, entre outros.