depois

depois

por Luciana Henrique

24 de setembro de 2024

Hoje depois do Vírus,
ainda escassos dos cinco sentidos,
não queremos falar nisso.
Depois da curva, da alta, da queda, do luto,
reclamamos distraídos
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀na rua
do tempo,
da chuva, da seca, do calor, do frio,
dos políticos.
Postamos as mesmas fotos de comida
e a legenda retórica
de que aprendemos com isso.
Perdidos
hábitos, parentes, empregos,
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀perdidos
casamentos, calendários, velórios.
Uns tentamos ainda rasgar
a pele dos próprios presídios.
⠀⠀⠀⠀O tempo
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀buscamos ainda
sentido.
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀O tato
tanto
tempo proibido.
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀O outro
tão necessário, tão inimigo.

Ainda dependentes e fartos de
dispositivos,
deixamos escrito
na nuvem
aos nossos filhos:
talvez não sejamos melhores
e não queiramos falar nisso
e não estejamos inteiros.
Carregamos ainda
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀arcaicos desejos
de amor e de toque
e mais alguns vícios.
Passamos adiante nossos indícios,
a mesma antiga busca
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀de sentido.
Em que pese
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀e ainda
estamos vivos.

Luciana Henrique é professora de literatura no IFB, pesquisadora de poesia contemporânea na UnB e mãe da Lia. Arrisca seus poemas no @poesia_sem_chao (https://www.instagram.com/poesia_sem_chao/), com imagens da designer Mari Henrique e revisão de texto de Anna Raíssa Guedes. Tem publicações nas revistas Aboio e Mallarmargens.