Juliana W. Slatiner (https://aboio.com.br/tag/juliana-w-slatiner) nasceu no Rio de Janeiro, mas cresceu em Belo Horizonte. Formada em Comunicação Social, atuou como redatora publicitária, ofício pelo qual foi contemplada com prêmios nacionais e internacionais. Após um período de crise, Juliana mudou-se para a Bahia. Depois, durante cinco anos, com uma mochila nas costas, passou por mais de 30 países. Hoje, mora em Berlin. Eu era uma e elas eram outras (https://aboio.com.br/produto/eu-era-uma-e-elas-eram-outras-juliana-w-slatiner/) (Aboio, 2023) foi uma tentativa de condensar sua experiência de vida no Brasil assim como no exterior.
Distrito de Polícia de Kaski, Pokhara
Apagaram as luzes dos corredores, mas o branco do papel parece piscar aceso nas minhas mãos. As quatro que dividem o espaço comigo enfim dormiram. As paquistanesas, a americana e uma outra, que ainda não sei de onde é, porque chegou chorando muito, com a cara cheia de hematomas frescos e ainda não falou uma palavra. Pelo menos há um pouco de silêncio.
Escrevo sentada no chão, com as pernas esticadas, usando de mesa um livro em nepalês sobre as origens do hinduísmo que consegui na biblioteca. Chamamos de biblioteca, mas na verdade é só um carrinho de supermercado com livros doados. Passa uma vez por semana, no corredordas celas dos turistas contraventores e imigrantes ilegais.
Não falo, muito menos leio nepalês. Desde que cheguei, só li “A Conquista do Everest” e “O Caminho da Felicidade”, os únicos disponíveis em inglês, porque a ironia da vida não se cansa. Também não sei qual livro teria se encaixado nesse momento. A maioria dos outros está em hindu. Tem uma trilogia em forma de fantasia moderna sobre a vida do Shiva que dá até briga nas celas dos homens, mas nunca chegou na nossa. Não sei em que língua está, mas sei que em português não tem nenhum volume. Imagino se alguma vez teve.
Nossa ala é a mais nova do prédio. Tem tetos e paredes claras como um hospital e a fofoca típica é de que somos tratados melhor do que do outro lado da delegacia, onde ficam os locais. Pelos gritos que ouço de vez em quando, não duvido. O prédio não é grande e, como o refeitório está em obras, recebemos as marmitas do restaurante do outro lado da rua, três vezes por dia. Metade da comida do meu prato já esfriou. Ainda tem arroz, dal, um pedaço de naan e o mix de vegetais refogados do dia. É muito mais comida do que consigo comer desde que saí de lá.
Minha advogada, a santa Kathleen, ou Miss Cohen, como prefere ser chamada, me pediu para escrever tudo que eu lembrasse. Disse que minhas chances de sair aumentaram depois que conseguiu o contato com a tal jornalista no Brasil. Não conheço a minha conterrânea, mas a Miss Cohen disse que foi ela quem cavou a notícia que vai me ajudar. Também insistiu em não divulgar o nome da outra, por enquanto. Como se eu não estivesse acostumada com isso. A falta de nomes é parte do que tenho para contar.
Para ser sincera, não sei nem os nomes dos dois que me colocaram aqui. Nem queria ter que saber, mas provavelmente vou acabar sabendo. Os que estavam no quarto naquela noite. Não adiantou só a confissão dos desgraçados, a justiça desse país quer saber exatamente o que aconteceu comigo. Tenho que explicar o que eu fiz durante todo este tempo aqui. Depois, meu testemunho vai ser traduzido e incluído no processo. Me deram este caderno grosso com aro de metal e duas canetas azuis que, teoricamente, só posso usar durante o dia, em horários específicos, e que, nas outras horas eram para ficar guardados com a assistente do delegado, a eficiente e noveleira Sharmila.
Falei para ela que não consigo escrever com a confusão dos presos durante o dia. Ela acabou de sair da escola militar, fala três línguas e é bastante atenciosa comigo. Parece que já entendeu que não esfaqueei, nem estrebuchei ninguém. Sempre que a Sharmila passa no corredor, puxa conversa, me pergunta das novelas brasileiras que nunca assisti, e no final me diz para eu ficar tranquila, que não demora e vou ter direito ao meu passaporte de volta.
Hoje ela não veio buscar o caderno.
Vou escrever o que lembro, sem pensar no juiz ou na juíza que vai pegar o meu caso. A Miss Cohen que me desculpe, mas foda-se. Vou contar pela minha sanidade, por elas e pela Tecla. O passado mora aqui dentro, mas as memórias têm vontade própria, só saem pelas portas que elas mesmas escolhem, na hora que bem entendem. Foi por isso que não entendi nada, quando acordei presa numa outra cela.
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Mais sobre a obra
Romance de estreia de Juliana W. Slatiner, Eu era uma e elas eram outras começa com a história de uma brasileira presa no Nepal e depois transborda para uma investigação sensível sobre silêncio, comunhão e a condição feminina.
Para a jornalista, cineasta e apresentadora Krishna Mahon (https://www.instagram.com/krishnamahon/), que assina a orelha do livro, “[P]ersonagem, escritor e leitor não conseguem largar a reflexão vertiginosa sobre as crenças e relações humanas, enquanto são levados por uma escrita leve e ao mesmo tempo extremamente profunda”.
Marcado pelo descobrimento e a vertigem, o romance Eu era uma e elas eram outras nos convida a embarcar numa jornada deslumbrante pelo mistério e o desconhecido.
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Natan Schäfer (Ibirama, 1991) é mestre em estudos literários pela Universidade Federal do Paraná e pela Université Lumière Lyon 2. Foi professor do curso de Bacharelado em Artes Visuais da UNESPAR, membro da Psychoanalytische Bibliothek Berlin e tradutor convidado nas residências Looren América Latina (Suíça) e Résidence Passa Porta (Bélgica). É autor de Taquaras (Contravento Editorial, 2022) e tradutor de, dentre outros, Por uma insubmissão poética (Sobinfluência, 2022) e La promenade de Vénus (Venus D’Ailleurs, 2022). Atualmente é responsável pela Contravento Editorial, também assinando a coluna "A Fresta" na página da editora Aboio. Além disso, dá a ver em desenhos, pinturas, escritos e fotografias algo da poesia que lhe atravessa.