Eu descobri Godard muito tarde. Mesmo tendo estudado cinema na graduação, fui descobrir seus filmes muito depois, já no doutorado. Foi lendo os livros de Deleuze sobre cinema e Um teste de resistores (https://7letras.com.br/livro/um-teste-de-resistores-2/) de Marília Garcia que Godard entrou no meu radar. Lembro que na graduação eu sentia uma antipatia por Godard e seus filmes. De algum modo a obsessão que todos tinham com sua obra e sua figura me fazia achá-lo muito batido. Não fazia sentido gostar de algo que todo mundo gostava. Godard pra mim soava como o clichê do alternativo, o mainstrean da vanguarda, o que pode parecer muito absurdo, mas nem tanto, se pensarmos que sua fama e sua contribuição essencial para o cinema dito moderno (todo cinema é, na prática, moderno) o colocaram em um lugar de destaque – e até mesmo de popularidade.
Talvez Godard tenha sido mesmo o mais popular dentre os alternativos, mas isso não o fez menos alternativo. Pelo contrário, seu poder de iconoclastia e de mover as peças do cinema, tal qual o século XX conhecia até então, talvez tenham sido tão grandes que por isso mesmo sua figura e seus filmes povoam até hoje um vasto imaginário da cultura popular.
¶ Godard não tem receio de expor o cinema, mesmo que corra o risco de tirá-lo de seu status de representação do real. Pelo contrário, é precisamente isso que ele busca fazer (…)
Foi bom que eu tenha me encontrado com Godard tardiamente, depois dos trinta. Assistir a seus filmes com uma certa maturidade certamente me fez apreciá-los muito mais. Me fez uma espectadora muito menos exigente quanto a necessidade de entender algo, de tirar, necessariamente, algum significado da sua obra. Aliás, se tem algum significado que os filmes de Godard podem assumir é justamente que o cinema não precisa significar nada. Ele não precisa, como até então mostrava o cinema clássico hollywoodiano, ir em alguma direção, ter um sentido. A montagem no cinema não precisa operar, como nos ensina Deleuze, uma síntese de um todo cujo significado busca afirmar alguma visão de mundo – uma moral, uma ideologia, um dogma. Godard nos ensina que o cinema, e sobretudo a montagem, não são uma síntese do mundo. O cinema de Godard é tudo menos sintético. É caótico, saturado, iconoclasta e contraditório. Tem a brilhante capacidade de não se levar totalmente a sério. De duvidar (e rir) de si mesmo.
Por isso o cinema é constantemente um tema e um personagem em seus filmes. Godard não tem receio de expor o cinema, mesmo que corra o risco de tirá-lo de seu status de representação do real. Pelo contrário, é precisamente isso que ele busca fazer, expor “o fato moderno [de] que já não acreditamos nesse mundo. Nem mesmo nos acontecimentos que nos acontecem, o amor, a morte, como se nos dissessem respeito apenas pela metade”1. Seu metacinema trata de inverter a equação da representatividade: “Não somos nós que fazemos cinema, é o mundo que nos aparece como um filme ruim”2. Para Deleuze, o poder do cinema moderno, e em Godard especialmente, seria “restituir-nos a crença no mundo”3 tal qual ele é, e isso implica em “crer no corpo. Restituir o discurso ao corpo, e, para tanto, atingir o corpo antes dos discursos, antes das palavras, antes de as coisas serem nomeadas”4. Não é uma surpresa que, assim como Deleuze, seu fã, Godard tenha decidido pelo suicídio (assistido, no caso do cineasta). Tanto para o filósofo como para o cineasta o suicídio coincide com sua crença, sua fé no mundo e acontece como um último ato de crença no corpo, uma escolha tanto ética quanto estética.
1 DELEUZE, Gilles. Cinema 2 – A imagem-tempo. São Paulo: Editora 34, 2018. Pag. 249.
2 Ibidem.
3 Idem, p. 249.
4 Idem, p. 251
Yasmin Bidim é poeta, artista da imagem, pesquisadora e trabalhadora da cultura. Faz doutorado em Estudos de Literatura na UFSCar e escreve críticas e ensaios sobre arte e cultura. Produz no YouTube o canal de videopoesia Poesia em Obra. É mediadora do Leia Mulheres São Carlos. Publicou Livro dos Interiores (poesia). Tem trabalhos publicados na Revista Cupim, Felizberta Zine, Ruído Manifesto, Jornal Relevo, Totem & Pagu e Revista Aboio.