hoje foi preciso

hoje foi preciso

por Ana Cláudia Romano Ribeiro

24 de setembro de 2024

hoje foi preciso

botar fera em pé
estribar estrada

hoje foi preciso aumentar o som para não ouvir primeiro o auto falante altissonante

demos mau jeito no pé

ontem foi preciso aumentar o som para não ouvir primeiro o auto falante altissonante

duvidamos tanto até com o pé
fizemos finca-pé
desistimos

fomos fôrma para pé alheio
regamos pés
faltou terra nos pés mas brotamos

fera em pé
estribamos estrada

sou uma montanha
que faz aula de dança
um sabre
que corta o ar devagar
mudo e finco
mudo e finco
herdo meu nascer todos os dias
me deserdo pra virar cavalo azul

as coisas que não sei me deixam estatelada
por exemplo
ontem já era noite e jantei com uma abelha
interessada na lâmpada
tentei levá-la pra fora mas ela voltou
três vezes
na quarta fechei a porta

tenho levantado os braços mais alto que de costume
descido o corpo em velocidade lenta, os joelhos dobrados
tenho prestado atenção nas plantas
dos pés, separado os dedos
tão pequenos, tão inseparáveis
tenho tentado nascer do chão mas é difícil

aprendi a falar
as palavras no quintal sobem e descem nas árvores, engalfinham-se
começam tudo de novo

o pó se acumula sobre os móveis, sobre os livros, sobre a hélice do pequeno ventilador
sobre a cesta de plantas secas a fuligem
cobriu o tampo branco da mesa lá de fora e o tempo
mais fechado que boca de bode anuncia tempestade

aqui dentro cheira a fumaça que não sei de onde vem
quebrei um pote de biscoito e consertei um bule
daqui a uns meses morrerá minha mãe

epitáfio

sentiu pouco
sentiu muito
amou uma blusa azul
olhou nos olhos e desviou

sentiu vergonha
constrangimento
saco cheio
e alegrias

com dois gergelins
moveu montanha
catapultou
freou brusquidão

sentiu vergonha
constrangimento
saco cheio
e alegrias

espigou-se em lâminas
esticou-se
alcançou comedouro
barriga para frente
franziu cenho e matou pernilongos

sentiu vergonha
constrangimento
saco cheio
e alegrias

sonhou pouco
sonhou muito
pendurou-se no varal
secou ao sol

sentiu ………..onha
………………….ento
……………cheio
…………..ias

no criado-mudo
contrapeçonha
instrumento
passeio e frias

Ana Cláudia Romano Ribeiro escreve, traduz, dá aula e pesquisa. Faz as tirinhas de A vida de Deise com sua esposa, Deise Abreu Pacheco, e tem sempre um galho para serrar no quintal.