Alguns diziam que era porque Maristela se destacava mais do que o marido e como se sabe, o homem não gosta de se sentir menos que a mulher. Outros diziam que ela só vivia para o trabalho e Oscar começou a se sentir solitário e foi buscar companhia em outro lugar. Existiam diversas versões para a história da separação de Maristela e Oscar, mas em todas a culpa era dela.
Deveria ser quinta-feira. Só poderia ser quinta-feira, pois as meninas não estavam em casa e nem Oscar. Maristela estava implorando a Freddie para que ele tomasse banho, mas o menino dizia que estava com frio. O som do telefone tocando despertou Maristela da conversa com o filho. No início ela achou que ainda estava no trabalho, tanto que atendeu com “Boa tarde, Contabilidade. Maristela. Com quem eu falo?” para logo em seguida se desculpar e adotar um tom mais relaxado. A voz do outro lado da linha era desconhecida e parecia ser de uma mulher.
Ao desligar, Maristela começou a repassar mentalmente as últimas conversas com Oscar sobre os alunos dele. Lembrou-se de uma aluna que ele atendeu mês passado. Ao contrário dos demais, esta veio fazer a aula na casa do próprio professor. Oscar tinha um jeito paizão com os adolescentes, mas também era um homem bonito. Contava a seu favor o fato de ainda não ser calvo e de usar sempre jeans e camiseta de banda. O rebelde sem causa que cruzava o umbral do século XX para o XXI. Isso lhe dava a aparência de alguns anos mais jovem. Isso também havia irritado os pais de Maristela quando ela apresentou o namorado há mais de vinte anos. “Tu vai ficar com esse maloqueiro tatuado?” eles a questionaram. E ela gostou da sensação de desafiá-los, sentiu-se dona da própria vida pela primeira vez.
Ainda era um horário caro para acessar a internet, mas se ela não conectasse naquele momento, os outros três iriam chegar em casa e a chance estaria perdida. Ela deixou Freddie assistindo um desenho na TV e foi até o outro lado da sala. Ligou o computador. Parecia estar demorando mais do que o normal. Deve estar cheio de vírus. Apareceu a tela inicial e Maristela conseguiu abrir o discador. Trocou o cabo do telefone pelo do modem. A senha era uma combinação dos dias dos aniversários das crianças. Crianças. Freddie ainda aceitava ser chamado assim, mas Jude e Angie detestavam. No último dia das crianças tinham oferecido presentes para os três, mas as filhas tinham feito questão de informar aos pais que já eram grandes demais para isso. Mesmo assim, tinham ficado com os presentes. Ao escutar o barulho do modem, Freddie se virou para a mãe. Antes que ele pudesse perguntar qualquer coisa, Maristela ordenou que ele ficasse no sofá, dizendo que precisava fazer algo bem rápido para o trabalho. Procurou no Outlook, nada. Tentou achar algo sobre a mesa ou dentro das gavetas. Nenhuma pista. Talvez a ligação tenha sido um trote. Algum ex-aluno querendo aprontar uma para o marido. Os adolescentes de hoje são meio perturbados. Como era mesmo o nome daquela escola nos Estados Unidos? Aqueles meninos atiraram nos colegas e nos professores sem dó. Olhou para o sofá onde Freddie estava absorvido pela luta de três garotas e um monstro. Esses meninos da escola dos Estados Unidos também tinham sido crianças um dia. Em que ponto as coisas deram errado? Maristela decidiu então abrir o histórico do navegador. Havia páginas de Wicca e satanismo (coisa de Angie), de música (coisa de Oscar) e sobre discos voadores (coisa de Jude com Oscar). Uma janela piscando chamou a sua atenção. Clicou. ICQ aberto. Alguém com o nick Hotel California mandava saudações. Definitivamente coisa de Oscar. Não entendia essa obsessão por uma época. Como se os melhores anos e as melhores músicas já tivessem passado. Era como ficar voluntariamente presa ao segundo grau pelo resto da vida. Não, obrigada. Maristela tinha necessidade de futuro. Desde o dia em que desagradou a família com Oscar, ela entendeu que escolher o que queria para si poderia significar abrir mão do apreço de algumas pessoas. Ou lidar com o ranço delas por algum tempo, até que esse sentimento desbotasse como roupa guardada no armário. Uma peça a ser descartada porque já não faz mais sentido estar ali, a não ser como um lembrete da própria teimosia. Hotel California não parava de enviar mensagens. Maristela leu aquelas palavras com olhos carnívoros e procurou o endereço sugerido pelo amigo virtual do marido. Uma foto começou a ser carregada. Freddie já estava assistindo outro desenho. Maristela ouviu o portão abrir. Não vai dar tempo. A foto pela metade. Duas pessoas com certeza. Só uma delas mostrando o rosto. O carro entrou na garagem e alguém fechou o portão. Eram dois homens. Aquele que não mostrou o rosto tem uma tatuagem no braço esquerdo. Maristela escutou a chave na porta e tentou fechar a página da internet. Travou. O cursor do mouse apontava a boca do homem com tatuagem que preenchia o espaço entre as coxas do outro homem. Qual era mesmo a combinação de teclas para reiniciar? Tocar o teclado era como tentar movimentar um membro amputado. Fingindo sangue-frio, Maristela desliga o estabilizador da tomada. Quando Oscar se aproxima para beijá-la, ainda há um pouco de estática na tela.
Alessandra Boos frequenta simultaneamente o teto de Virginia Woolf e o quarto de Carolina Maria de Jesus. Nasceu em Blumenau/SC (1984) e tem textos espalhados pela internet desde o começo dos anos 2000. Publicou em 2021 o seu primeiro livro solo Vermelho vivo pela Rizoma Projetos Editoriais. Vive desde 2019 em Florianópolis, onde é professora, tradutora e estudante de Letras/Espanhol na UFSC.