igrejinha acompanhado de estudo para além do objeto

igrejinha acompanhado de estudo para além do objeto

por Natan Schäfer

24 de setembro de 2024

Convidamos três poetas para escreverem inspiradas em quadros da artista plástica Paula Siebra.

Aceitaram o convite as poetas Ivana de Lima Fontes (https://aboio.com.br/mulher-entediada-e-de-olhos-bem-fechados/), Laís Araruna de Aquino e Pâmela Filipini (https://aboio.com.br/imbuzeiro-e-voltar-se-para-si-mesmo/).

Sem mais delongas, começamos com Laís Araruna de Aquino fazendo seu Estudo para Além do Objeto sobre a Igrejinha.

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ESTUDO PARA ALÉM DO OBJETO

Laís Araruna de Aquino

para chegar lá, entra-se em uma estrada de barro
o bambu cresce como um arco sobre as cercas e faz sombra no chão
no caminho, uma ingrejinha de paredes brancas e janelas verdes
na segunda bifurcação, a propriedade surge à esquerda
e a casa da minha avó desponta no topo

no terraço, havia cadeiras de balanço e o piso era de azulejo,
onde patinávamos e cortávamos a bola contra a parede
na sala, a mesa grande de madeira persiste mas o aparador não há mais
nem nós nos sentamos nas cadeiras quando a noite cai
quando fazia o sereno, chamavam para entrar
e comíamos canja, pão branco e queijo coalho

a minha avó tirava o miolo inteiro do pão e passava geleia de laranja
a minha tia servia o leite com duas colheres de nescau e punha açúcar
mas o caldo era tão doce e deixávamos o fim
minha tia falava é para o santo e por isso gostávamos dos santos
naquele espaço, a sagração era o sopro da noite que vinha à mesa
e continuava pelos corredores e a cozinha entre pés e murmúrios

nos quartos, havia um terço em cada cama
e minha tia, beata, ensinava o anjo-da-guarda
e perguntava se havíamos rezado antes de dormir
depois a casa se enchia de silêncio e lá fora habitava um silêncio
maior, recortado pelo latido dos cães despertos na madrugada

o nosso sono era resguardado pela vigília dos deuses,
[ um dos quais se fez homem e morreu
e a nossa finitude humildemente se curvava ao escuro da noite
sob um céu de estrelas distantes e incapturáveis
ali, o lugar se abria como uma nave para abrigar os homens
e a divindade era uma ave preta que pousava e levantava voo

nós ainda não estávamos jogados nas profundezas de um eu criador
de cuja graça e máquina partiria o cheiro das mangas e jasmins
de cujo engenho dependeríamos para não derrocar
[ uma última compreensão
o mundo, o que estava lá, não o que criamos, era passagem e altar
por onde transitávamos a inutilidade dos nossos gestos
e recebíamos nossa mortalidade como um eclipse do eterno

nesse mundo nos apagaríamos mas ele ressurgiria em outra
estação como uma árvore ancestral persiste no meio do deserto
não a dominação das coisas
mas o acontecer de seu mistério
era a primeira luz que nos envolvia na frescura da manhã

Laís Araruna de Aquino nasceu em 1988, no Recife. É autora do livro Juventude (http://www.tanlup.com/juventude-lais-araruna-de-aquino-1203995) (Ed. Reformatório, 2018), ganhador do Prêmio Maraã de Poesia (https://www.premiomaraa.com.br/) de 2017. (https://www.premiomaraa.com.br/2017)

Paula Siebra nasceu em Fortaleza, Ceará. Em 2016, muda-se para o Rio de Janeiro para estudar Pintura na UFRJ. A artista tem como enfoque imagens relacionadas ao cotidiano, à intimidade e ao imaginário nordestino. Começa a expor em 2017, numa coletiva no Museu Nacional de Belas-Artes. Desde então, participa de diversas outras exposições em instituições como Centro Cultural dos Correios e Centro Cultural da Light.Seu trabalho tem origem na exploração de temas já consagrados na Pintura, como retratos, paisagens e naturezas-mortas, que ao longo do tempo vão ganhando um caráter formal peculiar: há uma simplificação no desenho da forma e uma redução no contraste entre os tons cromáticos que estabelecem polarizações entre realidade e sonho, como um devaneio sobre o cotidiano.

Natan Schäfer (Ibirama, 1991) é mestre em estudos literários pela Universidade Federal do Paraná e pela Université Lumière Lyon 2. Foi professor do curso de Bacharelado em Artes Visuais da UNESPAR, membro da Psychoanalytische Bibliothek Berlin e tradutor convidado nas residências Looren América Latina (Suíça) e Résidence Passa Porta (Bélgica). É autor de Taquaras (Contravento Editorial, 2022) e tradutor de, dentre outros, Por uma insubmissão poética (Sobinfluência, 2022) e La promenade de Vénus (Venus D’Ailleurs, 2022). Atualmente é responsável pela Contravento Editorial, também assinando a coluna "A Fresta" na página da editora Aboio. Além disso, dá a ver em desenhos, pinturas, escritos e fotografias algo da poesia que lhe atravessa.