Interpretações, ações e reações em Noite de Estreia

Interpretações, ações e reações em Noite de Estreia

por Caio Naressi

24 de setembro de 2024

Dentre as razões do inconsciente que são, muitas vezes, inexplicáveis, escolhi falar de um filme que me é muito caro. Um filme que quando vi pela primeira vez não tinha maturidade suficiente para entendê-lo, mas quando revi, algumas vezes depois, as camadas foram se mesclando e a potência das imagens fizeram então o seu eco dentro de mim.

Essas palavras são apenas para tentar traduzir o efeito que o filme Noite de Estreia (Opening Night, EUA, 1977) (https://letterboxd.com/film/opening-night/) pode causar. Talvez, dentre os críticos de cinema mais ferrenhos, que usam da técnica cinematográfica para entender e explicar o cinema, eu me aproxime pouco, ainda que o faça. Porém, é o cinema que fornece material para entender a vida. E é daí que parte, em geral, meu ponto de vista ao assistir um filme.

Em Noite de Estreia, John Cassavetes (https://letterboxd.com/director/john-cassavetes/) nos coloca diante de alguns dramas, por isso as diversas camadas citadas anteriormente. Há, claro, a complexa relação entre personagem, ator; ficção, realidade. Ou seja, o teatro como ponto de imbricação de uma terceira persona do corpo. O corpo, então, como espetáculo de potência de ação, da exaustão da ação e da ausência de controle: o corpo como reação imediata na construção do pensamento. Afinal, essa é a grande vertente do cinema de Cassavetes1. Para mostrar tal relação de subjetivação do corpo, vemos cortes rápidos e abruptos nas imagens e seus já reconhecíveis primeiríssimos planos, onde conseguimos captar cada hesitação dos personagens. E é na beleza da hesitação que se verifica a essência humana.

É entre conversas travadas por Sarah e Myrtle que podemos entender a cumplicidade do processo que Myrtle enfrenta e pelo qual Sarah já passou.

Além disso, há o drama particular que cada personagem experimenta diante dos acontecimentos de uma peça que se chama vida. O improvável e o inesperado são colocados diante da lógica natural da vida e do passar do tempo. Diferente, e ao mesmo tempo muito próxima, a vida pode ser como uma peça de teatro: por mais que se decorem as falas, um espetáculo é diferente do outro.

É, portanto, na questão do envelhecer – e de se deparar com o envelhecer – que a atriz-celebridade Myrtle Gordon (a impecável Gena Rowlands (https://letterboxd.com/actor/gena-rowlands/)) é confrontada. Ao aceitar o papel principal da peça The Second Woman (em tradução, A Segunda Mulher), que discute a posição da mulher no envelhecer a partir dos relacionamentos entre o ex-marido e o atual, Myrtle praticamente colapsa entre o mundo ficcional, suas fantasias e a realidade (cruel) do tempo. Myrtle é Virginia, a personagem da peça, e Virginia é Myrtle. A construção entre as duas se confunde e fica difícil distinguir quem é quem, tanto ao espectador quanto às próprias personagens.

A peça é escrita por Sarah Goode (Joan Blondell (https://letterboxd.com/actor/joan-blondell/)), uma mulher mais velha que passou e superou, a partir da escrita, o drama de envelhecer. É entre conversas travadas por Sarah e Myrtle que podemos entender a cumplicidade do processo que Myrtle enfrenta e pelo qual Sarah já passou.

Somos voyeurs ávidos por construir o dentro e o fora, não só da peça, mas também dos personagens.

É aí que entra o trabalho excelente de Cassavetes. A partir da linguagem cinematográfica nós, espectadores, nos perdemos nessas personas e em suas confusões.

As imagens se dividem em dois momentos: ora vemos em plano aberto a visão teatral, nos deixando assistir a uma peça filmada, ora a câmera nos lembra de que estamos no cinema e o plano se fecha e podemos, então, adentrar as coxias do teatro e vivenciar a dramaturgia interna. Somos voyeurs ávidos por construir o dentro e o fora, não só da peça, mas também dos personagens.

Há ainda uma terceira mulher, responsável por ser o estopim da crise de Myrtle. Na saída da primeira noite da peça, logo no início do filme, uma misteriosa jovem de 17 anos vai ao encontro da atriz e se declara apaixonada por ela e pelo seu trabalho. Myrtle imediatamente se sente cúmplice dessa jovem que, em seguida, é atropelada e morre em frente ao teatro. É essa jovem que entra na fantasia de Myrtle. É ela que encarna o papel da jovem que habita em Myrtle e que causa confrontos – até mesmo físico – entre as duas. É ela também, nas fantasias de Myrtle, que afirma que o teatro é sexo, libido, potência. E todos que passaram dos 20 e poucos anos sabem que é principalmente no ato sexual que vemos e sentimos a velhice nos olhar fundo nos olhos. Para o bem e para o mal.

Entretanto, a vida é o que acontece entre os atos, nas coxias, nos entre quadros e é isso que o bom cinema está a nos mostrar.

O filme acompanha todo o crescente drama de Myrtle até a estreia da peça em Nova York. Vemos uma Virgínia (ou Myrtle?) improvisando falas e ações durante os espetáculos anteriores à estreia principal e temos acesso a todas as consequências de seus atos. É entre os confrontos e a esperança de uma retomada da atriz que diretor, produtor e elenco esperam que a peça vá estourar. Mas a cada interpretação de Myrtle, vemos uma Virginia completamente diferente da anterior, em uma espécie de teste de limites entre a tensão do roteiro e a improvisação do elenco. Nos confundimos entre as duas até a grande estreia que dá título ao filme. Logo, é com apreensão que assistimos aos últimos trinta minutos de longa, sem saber exatamente quem estamos a ver no palco. A interpretação final desses 30 minutos, entretanto, fica a cargo do espectador.

É, portanto, com Noite de Estreia que digo que o cinema, para mim, é como Myrtle interpretando Virginia. É, sim, uma questão técnica que, quando bem executada, se transforma em uma filosofia, um delírio e, por que não, uma crise. A partir do cinema, permito-me entender a vida. A partir de outros pontos de vista, construo o meu. Nessa confluência entre o que eu penso e o que eu estou a ver, nasce uma análise. E é claro que, se não há um trabalho técnico apurado, o cinema se torna superficial e ficamos presos a questões banais como começo, meio e fim de uma história. Entretanto, a vida é o que acontece entre os atos, nas coxias, nos entre quadros e é isso que o bom cinema está a nos mostrar. Muitas vezes não precisamos de um final, nem talvez de uma boa estreia, mas precisamos, com certeza, de algo que nos dê sentido no durante.

[1]: Para quem se interessar na questão dos corpos, recomendo a leitura do livro Le corps au cinéma: Keaton, Bresson, Cassavetes (1998) de Vicent Amiel em que o autor vai discutir a questão da objetificação do corpo, reduzido ao controle do poder disciplinante, como acordado por Foucault, e o retorno à subjetividade do corpo nos filmes de Cassavetes, por exemplo, algo que discuto brevemente neste artigo.

Caio Naressi é cofundador do FotSom e cineasta independente desde 2015. Atualmente realiza um doutoramento em cinema pela Universidade de Montréal onde pesquisa a possibilidade da transcrição da memória autobiográfica em animação.