Meio boazinhas, meio bobinhas, por Yvonne Miller

Meio boazinhas, meio bobinhas, por Yvonne Miller

por Yvonne Miller

24 de setembro de 2024

Chico, apesar de ser um cachorro da raça mais inteligente do mundo, ainda não aprendeu a brincadeira do graveto. Dois anos e meio treinando, e mesmo assim ainda não entendeu que precisa entregar o graveto primeiro para que a gente possa jogá-lo de novo. De resto, faz tudo direitinho: corre atrás, pega e traz, mas depois não solta. Com a madeira entre os dentes, fica enfiando o focinho nas nossas mãos como dizendo "pega!". E aí a gente pega e nada dele largar o negócio. Fica puxando, puxando até a gente perder a paciência e soltar. "Fica com ele então, ora mais!". Mas também não quer ficar com o graveto de graça. Lá vem ele de novo pra cutucar nossas mãos com o focinho.

Às vezes deve achar que está deixando muito difícil pra nós humanas. Então coloca o graveto no chão, pertinho da gente. Andando em ré, se afasta um pouco, sem perdê-lo de vista. Olha pra madeira, olha pra gente, mais um passo pra trás. Olha pra gente de novo: "Tá vendo como estou deixando fácil procê? Pega, vai, tenta!". Mas é só a gente mexer um dedo que ele dá um pulo e o pega seu tesouro de volta. Logo empina o focinho no ar, triunfante. O único jeito de conseguir que ele largue o graveto é jogando outro. Só assim ele perde o interesse pelo primeiro e corre atrás do segundo, pega e traz.

Mas outro dia o observei conversando com o gato: "Nossas tutoras são até boazinhas, mas meio bobinhas, não acha?”, estava dizendo Chico. “Dois anos e meio treinando e tu acredita que até hoje não aprenderam a brincadeira do graveto?"

Yvonne Miller nasceu em 1985 na Alemanha, mas prefere o calor do Nordeste brasileiro, onde mora desde 2017. Cronista e contista, tem textos publicados em várias antologias e é uma das organizadoras e coautoras da coletânea de contos cearenses Quando a maré encher (Mirada, 2021). Pela Aboio, publicou Deus criou primeiro um tatu – Crônicas da Mata.