Pescador invisível

Pescador invisível

por Douglas Ferreira

24 de setembro de 2024

Eu, Juliana e Marco viajamos de carro para Pirapora, queríamos assistir ao espetáculo. Chegamos de madrugada, quase amanhecendo, a cidade ainda escura, nada a acontecer, então caminhamos ali por perto, na beira do cais

Juliana ainda não conhecia a cidade, então lhe mostrei: o rio está ali. Ela pisou numa poça d´água, eu tinha tentado, sem sucesso, impedir que ela se molhasse

Chegamos à rampa que desce pra areia, do alto víamos a enorme quantidade de canoas que pescavam. Um velho pescador remava em pé sobre sua canoa, sua pele se confundia com o escuro do céu e da água, de modo que ele parecia um ser, pescador invisível

Ficamos maravilhados

Minha mãe à beira do rio, nos reencontramos num longo abraço. Nós quatro sentados à margem, saudei então a outra mãe, retirando com a mão direita em concha uma porção de água e molhando minha cabeça, meu anjo da guarda, obrigado, minha mãe, dá licença, minha mãe

Amanheceu de repente, o dia clareou de uma só vez, sem nuances

O grupo teatral surgiu, avançando da margem para o raso do rio, deu início ao espetáculo, o figurino dos atores representava a mata, o fogo, o ar. Nesse instante, Marco disse a Juliana: é incrível (…) a cada vez que venho a Pirapora, a cidade se transforma, mesmo para os dois, que sempre moraram aqui, a cidade e o nosso corpo se transformam

Eu já tinha chorado antes, quando o céu ainda escuro, um choro sem lágrimas, apenas a emoção de estar ali, assistindo durar (…) a beleza da minha cidade. Gravei meu choro num toca-fitas, não sei por que razão. Depois me deitei no colo de Juliana e chorei uma vez mais, ela não compreendeu o motivo, quis me consolar (…) então minha mãe explicou o que não sabia explicar: eu amava (…) eu chorava porque amava

Douglas Ferreira nasceu em Pirapora (MG) e, atualmente, reside em Belo Horizonte. Possui formação em Letras pela UFMG e atua como professor e editor da Revista Cupim. Em 2019, participou do livro Canção de amor para João Gilberto Noll (Relicário Edições), escrito e organizado por Luis Alberto Brandão. É autor de Artur verde (Alecrim, 2020).