Carta à filha que talvez não venha

Carta à filha que talvez não venha

por Henrique Emanuel de Oliveira

24 de setembro de 2024

carta à filha que talvez não venha

te espero, minha filha
sentado em cadeira branca
ao final dos domingos

antes que um caminhão de gás
passe pesado e azul
anunciando nova segunda-feira

antes que os corpos
voltem a batalhar
contra um exército
invisível de seres

e nos trens nos passeios nas avenidas
um sistema de angústias se arme
erigindo, em todos, o eterno desalinho

há quatro meses
o vizinho da frente
abandonou a rua

já não conseguia subir
por conta própria
as escadas do sobrado

das tragédias que um dia
ousei acreditar
a vida foi a maior delas

e por você, menina
tratei cada canto de parede
com mil inseticidas

passei pano molhado
na madeira fria
asfixiando os cupins

sem nunca entender
quantas dores podem calejar
uma cria de Deus

há cinco anos
o baleiro da rua de cima
foi assassinado

três tiros secos
apenas
três tiros secos

talharam seu nome em praça pública:
quadra de futebol parque de diversão

fica um gosto de sangue
na garganta
daqueles que gritam gol

fica um risco de sangue
nas mãos
daqueles que balançam

o domingo carrega
as tristezas
deste tempo breve

crianças deslizam
pipas no ar
bordando a noite

e você, menina, com dedo lambido
estirado ao céu
poderá me contar em qual direção
o vento sopra

Foto de Leopoldo Cavalcante.

Henrique Emanuel de Oliveira nasceu em Feira de Santana na Bahia e mora em São Paulo. Jornalista pela faculdade Cásper Líbero. Participou, no ano de 2021, do CLIPE-POESIA da Casa das Rosas.