1. Aqueles que caem
Eu escrevo para os homens que
não sabem ler
Mas desconfiam
Do que dizem os poemas.
Eu escrevo porque tenho urgência de enunciar aquilo que a palavra não segura, que não é letra nem vocábulo, que não cabe no espaço
Que é o outro não visto, e bem conhecido.
Eu escrevo porque há um declive não mapeado no mundo
Não um lugar, mas um jeito de cair
Que derruba os desconhecidos a cada segundo
Eles desabam pra sempre
Desabam a sós
Sem ler os poemas
De boas novas
Por que os poemas
de boas novas
Não são feitos
para aqueles que caem
E é, também, porque posso cair,
que eu escrevo.
2. A memória do coração
A manhã, o bambolê, os pés, o vento, o dito, que também foi visto, e os olhos dos outros sorrindo. A beleza desorganizada que é a vida.
“Quantos anos tens?”
“Os que ainda restam viver”
“E quanto vives?”
E quanto vives?
E quanto vives?
O eco, o silêncio, o filme que a passagem registra e que ninguém poderá assistir na cabine anecoica do que é a memória do coração.
Congela o mundo no que vês agora e toma como teu retrato as coisas que enxergas.
A manhã, o bambolê, os pés, o vento, o dito, que também foi visto, e os olhos dos outros sorrindo. A beleza desorganizada que é a vida.
3. A palavra
Digo “cor” e a palavra desbota, porque é miúda e não sabe ser nada além de palavra; sustenta a memória da matiz mas não pode sê-la. Quando conta das lembranças, dá corpo ao vazio do que se fala. É oca, fraca, débil. Quer substituir as ausências e nomear os silêncios. Diz “luz” e acredita que fará iluminar. Padece de anunciar o que os olhos vêem. Quer guardar a flor, o ódio, as pessoas, o mar, os dizeres, tudo dentro da boca, como se se servisse do mundo e fosse capaz de prende-lo embaixo da língua e quando alguma coisa lhe escapasse, pudesse materializa-la novamente num timbre vocal.
4. As coisas do mundo
As coisas do mundo estão todas espalhadas
cercadas, escravizadas.
Foram cedidas e foram negadas
Negociadas
Esquecidas
Escondidas
Empoeiradas
Incendiadas
Esbanjadas
Suplicadas
Negligenciadas
Os donos das coisas do mundo
A troco do giro da manivela
Apossaram-se do tempo
– Que passa
Da vida
– Que passa
Agarraram-se com as mãos à terra, ao umbigo, às suas mulheres, aos seus pertences, aos seus chapéus e à ventania,
Porque do outro lado do muro os puxava a morte.
O
cabo
de
guerra
Da imortalidade:
O desespero de provar-se vivo pelo peso que se carrega
O pavor de sentir-se morto pela entrega.
As coisas do mundo,
Toda e cada coisa,
Consumida
Consumada
Não salva o homem do fim do homem
Não salva, no fim, o homem de nada.
5. O peso do mar
Quando olhamos para o céu, olhamos para baixo e o céu olha pra cima.
Quando as pessoas se dão conta disso elas caem para o céu e viram estrelas, elas contam os peixes do Volga com medo que o mar desabe.
O mar tem o peso da saudade.
Karine Padilha é artista multidisciplinar e graduanda em psicologia na faculdade CESUSC (FLNSC). Atualmente trabalha com psicologia e arte, realizando pesquisas e prestando atendimento no CEPSI – Centro de Produção de Saberes e Práticas Psicológicas (FLNSC).