Sucessão

Sucessão

por Daniel Borges

24 de setembro de 2024

Sucessão

vestidos de ouro
de latão
andando sobre ladrilhos
de pedra afiada
dançando
em meio ao silêncio

escutando as cornetas
da entrada real
reverenciando
o abstrato
seguindo
o discurso mudo
montando em cavalos
de madeira
e conquistando territórios
que sequer existem

somos como nobres:
construímos nosso castelo
de papelão riscado
no meio da rua
colocamos na cabeça
palavras tortas
ideias utópicas
e a coroa de fio de cobre
roubado

bebemos ao nada
nas noites escuras
cantamos felizes
uma linha antimelódica
e arrastamos
elegantes
nossas capas
de pano velho

somos realeza:
vivemos todos
na linha de sucessão
à morte.

AA

quando comecei
com o vinho
meu pai me perguntava
baixinho
o porquê de eu beber tanto

nunca consegui responder

hoje, porém
enquanto ele grita
e diz atrocidades
e desrespeita tudo o que sou
e um dia já fui

percebo, pai,
que bebo
pra te escutar
baixinho
de novo.

Ecos

E não há sede de águas
Nem a vontade dolorida da palavra.
Estou no centro escuro de todas as coisas
Mas a visão é larga
Como um grito que se abrisse e abrangesse o mar.
Hilda Hilst

geralmente
nos bares
nas conversas
as pessoas costumam falar muito
no que se tem
no que é palpável
no que se pode contar

e sempre que entro
nesse tipo de assunto
penso menos no que se tem
em vias gerais
e mais no que se sobra

tenho feito as contas
olhado nos índices
apagado o papel
e escrito tudo de novo
tenho me visto fracassar
de tantas formas possíveis
tenho pescado na pinça
indícios
do que um dia fui

tenho inventado o que não sei
e mentido sobre o que sei
na esperança de acertar
tenho tido muita insônia
com medo de encontrar
as coisas que deixei pelo caminho

tenho tido pressa
ando correndo
à procura de mim
e nunca me encontro

queria me perguntar
o que sobra



o que sobra quando
a alegria vira pesar
o trabalho vira protesto
e nas ruas
numa quarta de cinzas
as bombinhas carnavalescas
se confundem
com balas de borracha

o que sobra quando
até esse protesto é inútil
e aqueles que pensam correr
sequer se movem de lugar
e estamos cheios
de sonhadores
que se esqueceram
de fechar
primeiro
os olhos
e eu
que gostaria tanto
de gritar
mas vivo
perdendo a voz

queria correr pelas ruas
de madrugada
pra onde, então?
parando o trânsito
furando os pneus
quem pode me dizer
aonde guardei
o que sobrou?
entrar no mar aos gritos
chutar as areias da praia
fazer silêncio repentino
tentando escutar minha
própria voz

traçar linhas
chamem os cães!
mapas
espalhar cartazes
tragam a bússola!
escrever versos
falar em alto-falantes
correr em multidões de
caras pintadas de pó
e de peitos manchados
de sangue

depressa, não temos tempo!
preciso saber
onde me guardei

e assim que encontrar
me perguntar
o que sobrou então
daquilo que
tanto sonhávamos
daquilo que
pensávamos para nós
daquilo que
não contávamos
com a boca
mas entregávamos
com os olhos

queria muito lembrar
em qual cadeira
em que cruzamento
debaixo de que mesa de bar
me deixei
pensando no que sobra
e voltar correndo
não para me buscar
mas para ter a certeza de que

em matérias do que se tem
e do que se sobra
ecoo como um grito
abrangendo
a imensidão do mar:
tenho ligeiro costume
de sobrar demais.

Nascido no Rio de Janeiro e apaixonado por literatura desde pequeno, Daniel Borges é graduando em Letras pela UFRJ e escreve poemas, contos e prosa, com versos marcados pelo fluxo de consciência e pela incessante busca pela forma inconstante e oculta do existir.