
Vermelho/Ruína e as “pedras dispersas nos escombros de dentro”, por Adriane Figueira
por Adriane Figueira
24 de setembro de 2024
“El lenguaje silencioso engendra fuego. El silencio se propaga, el
silencio es fuego.”
(Alejandra Pizarnik)
“posso ver que o centro do fogo é intransponível.”
(Mar Becker)
Quero iniciar esse texto falando de duas poetas para chegar a uma terceira que, neste caso, é a razão central pela qual essas reflexões se erguem. Começo por Alejandra Pizarnik (1936-1972) e as mulheres que ousaram subverter a lógica masculina na poesia latino-americana do século XX. Ela, acusada de ser “pouco ou nada interessada” no cenário político argentino, especialmente dos anos 50 e 60, trouxe para os seus versos as inquietações mais profundas, uma mescla de subjetividades que agonizavam dentro de sua linguagem, do silêncio da noite que devora e forja a outra, as outras, os eus fragmentados.
No Brasil do século XXI, Mar Becker (1986-) resgata essas mulheres do fundo das águas, deslocando-as para fora das margens, quebrando a lógica raso-profundo e ampliando os espaços da poesia. A poeta gaúcha encena na força da palavra essa dança submersa, um silêncio prescrito, pré-escrito, que somente as mulheres compreendem, uma espécie de pacto engendrado pelas correntes fluídas, os líquidos que transbordam pelos corpos femininos.
Pizarnik fala “Todo hace el amor con el silencio…” e as palavras ganham novos sentidos ditos e interditos, o inefável que suspende o corpo do poema, o corpo de quem o escreve, o corpo de quem o lê e um corpo fora do corpo e também o corpo político, pois existimos localizadas e indissociadas do contexto, ainda que de modo aparentemente apartadas. Becker proclama “… uma mulher ama a outra em silêncio…” e a palavra “maldita” que encena a alteridade ressurge, emerge — mulher, signo caro, imprevisível.
Digo, dou voltas, me desprendo para ancorar nos versos de Erlândia Ribeiro (1995-), em sua obra Vermelho/Ruína (Urutau, 2021) e perceber onde essas pontas e tecidos se tocam e expandem. Espelho, fogo, labirinto. Vermelho — gerar, pulsar, sangrar. Ruína — desmanchar, dessacralizar, reconstruir. Caminhos escolhidos para trafegar pela potência poética da jovem escritora de Rondônia, estado ao Norte do Brasil e, portanto, fora da margem. Ruindo o ruído e ouvindo o silêncio, escalo.
movimento de ferida aberta…
A obra Vermelho/Ruína está dividida em fragmentos, três ao todo: fragmentos de pedras, fragmentos do desejo e fragmentos entre ser eu e ser outra. Ao dar forma ao caos pressuposto pela perda de uma espécie de “origem”, “alicerce”, os versos de Ribeiro capturam o impossível gesto de reunir os escombros que soterram a voz que tenta escapar pelas frestas empoeiradas, asfixiantes. A tentativa de toque da poeta que escala a incerteza perigosa, numa queda quase certa.
Repito, releio, remodelo e devolvo o quase — advérbio de modo e de intensidade, para pensar como Sísifo rola a pedra e como uma mulher que escreve se coloca neste e também em outro lugar da escalada, pois ao empurrar o seu verbo em chamas, rochoso que, de tanto correr água, cede, a mulher não permite que a devolvam ao chão, rompe o ciclo da submissão. A palavra é sua guerra, seu centro, o topo, um vulcão sempre em erupção.
Ela diz “abandonei o roteiro / disparando, desfazendo, desfiando…” (RIBEIRO, 2021, p. 12) e mais adiante “eu me lanço em atos / quase sempre impossíveis” (p. 13), mas para a mulher que impunha a pena, a “impossibilidade” não a limita: “sozinha desabo o mundo e rio e escrevo” (p. 20). Línguas de serpentes que desalinham o divino — no masculino —, escorrem como lavas flamejantes, magmas que esfriam e formam rochas, porém são abalos que modificam o interior da Terra, imprevisíveis.
Qual o mistério que circunda o poema? Uma pergunta impossível e sem qualquer resposta satisfatória. Mulheres reunidas em volta da fogueira. Pizarnik-Becker-Ribeiro, elas, como tantas outras, todas, ao infinito, escrevem fora do tempo, dentro de um espaço profanado, um quarto pequeno e escuro, mas que também é um universo, uni-versos. A palavra escapa, o corpo precipita diante do abismo, mas desliza suave e furioso pelas bordas, alcançando o outro lado da margem que é tripartida, encruzilhada do sonho que não opta pelo óbvio, pois: “el centro de un poema / es otro poema / el centro del centro / es la ausencia”, mas a lacuna pode ser preenchida pelo vazio, pelo silêncio, uma janela que se abre ao outro.
O sangue é o vivo, mas também a morte do (im)possível. O prazer retroalimentado pelos dedos que tocam, teclam, desenham as palavras. Um Eros feminino gozoso que brinca de esconder e revelar, sempre deflorado, em nascedouro sufocado, jogos de palavras que deflagram: “te leio por onde posso” (p. 39) e mais e de novo. Ler, reler, criar, desfazer, pois o desejo é caminho, tentação: “… o caos abre o mundo.” (p. 42).
As ondas da Mar trazem à beira o verbo que ainda não existe: “ama na minha boca a palavra que nunca é dita”. O eu, a outra, o fragmento. Erlândia sequestra a palavra e escancara os dentes. Ela — guiada pela chama vermelha que arde, pelos passos marcados no chão e desfeitos pelo vento, pelo silêncio que mancha cadernos, mulher viva, em fúria, despida de suas vestes metálicas, o sangue jorra em fluxo violento, o rio encarnado corre em redemoinho: mergulho, afogo, cuspo líquidos e revivo, revido, reconstruo. Eus que se confundem e se misturam.
A vida infiltrada nas fissuras do edifício abandonado, flores nascem das paredes com mofo, do concreto rachado, pois há um alicerce que não desaparece, se recusa a deixar ir, quer ficar e ser. Ela pinta os lábios e as unhas de rojo, aperta entre os dedos o caule de uma rosa, mas a dor não atinge o seu corpo, o sangue corre “todo vermelho vivo / dentro” (p. 59). Fora, centro.
Mais sobre a obra
“Eu nunca escrevi diários! Isto aqui é um extravasamento, um inventário estilhaçado, sem datas fixas no calendário, sem horários demarcados — guiado por Kairós”. Assim escreve no preâmbulo a autora de cacos retidos na margem, nomeando Kairós como preceptor de sua jornada entre a prosa e a poesia e, nesse simples ato, recusando a medida, a exatidão e a linearidade.
O tempo da palavra de Adriane Figueira é o do extravasamento. Os textos desse livro são desenhos sutis, quase oníricos, de um labirinto de memórias e vertigens que, solitário e vigilante, assoma como possibilidade de um contágio verbal que desoculta as tempestades da nossa experiência.
Adriane Figueira é paraense, nascida e criada às margens do Tapajós. Perdida e achada na capital paulista. Entusiasta da escrita e pesquisadora. Publicou Revoada do dragão (Editora Patuá) em 2021, e Voragem (Editora Folheando) em 2022.