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Laura Castanho traduz Laura Riding, Michael Drayton e Dylan Thomas

tradução de Laura Castanho
Ilustração de pássaro por Elizabeth Gould para "Pássaros da Austrália".

Laura Castanho nasceu em Santos (SP) e vive em São Paulo desde 2016. Formada em jornalismo pela USP, foi repórter na Folha de S.Paulo e na CartaCapital. Editou a zero, revista independente de cultura, e integrou a coletânea Retratos da vida em quarentena (Elefante e Dublinense, 2020). Trabalha como preparadora de texto.


Laura Castanho traduz para Aboio poemas de exortação por três poetas unidos pela lírica em segunda pessoa: Laura Riding, Michael Drayton e Dylan Thomas.

A seguir, você confere as traduções de cada um, seguidas das versões originais. Ao final, uma consideração da tradutora sobre os poemas.


1. Laura Riding (1901 – 1991)

Encarnações

Não negues tu,
Não negues tu, coisa da coisa,
Não negues tu, à luz do novo orgulho,
O pó antigo, original.

De que cova e que passado de carne e osso
Jazo, em sonho, sonhando
Sob o ditoso quebranto,
Viva, enlevada, esquecida dos inícios…
A morte veta cada instante de lembrança

Não vá eu, pedra em estátua transmutada,
Resgatar grão a grão o pó primeiro
E, da escada da memória, repetir:
Isto nunca fui.

Incarnations

Do not deny,
Do not deny, thing out of thing,
Do not deny in the new vanity
The old, original dust.

From what grave, what past of flesh and bone
Dreaming, dreaming I lie
Under the fortunate curse,
Bewitched, alive, forgetting the first stuff…
Death does not give a moment to remember in

Lest, like a statue’s too transmuted stone
I grain by grain recall the original dust
And, looking down a stair of memory, keep saying:
This was never I.


2. Michael Drayton (1563 – 1631)

Soneto

Não deu — que venha o beijo de separação.
Não, acabou, de mim não tomas nada mais;
E estou feliz, sim, do fundo do coração
Que de ti eu enfim me livrei e tenho paz.
Apertemos as mãos e anulemos os votos,
E que, da próxima vez que eu for te encontrar,
Não se perceba, então, o indício mais remoto
Do amor perdido, esvaziado, em nosso olhar.
Agora sopra o estertor último do Amor;        
a Paixão muda toma o pulso que se esvai;
a Fé reza ajoelhada, num vão ardor;
a Inocência fecha os olhos do que se vai.
Quem sabe agora que todos o encomendaram
Talvez queiras ressuscitar o que mataram!

Sonnet

Since there’s no help, come let us kiss and part.
Nay, I have done, you get no more of me;
And I am glad, yea glad with all my heart,
That thus so cleanly I myself can free.
Shake hands for ever, cancel all our vows,
And when we meet at any time again,
Be it not seen in either of our brows
That we one jot of former love retain.
Now at the last gasp of Love’s latest breath,
When, his pulse failing, Passion speechless lies;
When Faith is kneeling by his bed of death,
And Innocence is closing up his eyes—
Now, if thou wouldst, when all have given him over,
From death to life thou might’st him yet recover!


3. Dylan Thomas (1914 – 1953)

Não adentres sereno a noite forte

Não adentres sereno a noite forte.
A velhice há de arder ao fim do dia.
Brada, brada pela luz à morte.

Mesmo o sábio, que previu a própria sorte
Pois o verbo, ante o raio, é sem valia,
Não adentra sereno a noite forte.

O bom, que à onda final exalta o forte
Brilho de sua obra frágil na baía,
Brada, brada pela luz à morte.

O louco, que cantou o sol sem norte
E foi ver, muito tarde, que o perdia,
Não adentra sereno a noite forte.

O grave, ao fim surpreso pelo corte
Do olho cego que fulgura de alegria,
Brada, brada pela luz à morte.

E tu, pai, daí do teu triste porte,
Dá-me a bênção do teu pranto de porfia.
Não adentres sereno a noite forte.
Brada, brada pela luz à morte.

Do not go gentle into that good night

Do not go gentle into that good night,
Old age should burn and rave at close of day;
Rage, rage against the dying of the light.

Though wise men at their end know dark is right,
Because their words had forked no lightning they
Do not go gentle into that good night.

Good men, the last wave by, crying how bright
Their frail deeds might have danced in a green bay,
Rage, rage against the dying of the light.

Wild men who caught and sang the sun in flight,
And learn, too late, they grieved it on its way,
Do not go gentle into that good night.

Grave men, near death, who see with blinding sight
Blind eyes could blaze like meteors and be gay,
Rage, rage against the dying of the light.

And you, my father, there on the sad height,
Curse, bless, me now with your fierce tears, I pray.
Do not go gentle into that good night.
Rage, rage against the dying of the light.


Três poemas de exortação
por Laura Castanho

Tipicamente, a lírica é o território da primeira pessoa. Por meio da expressão meticulosamente burilada de sua paisagem interior, o poeta lírico costuma dizer: eu sou, eu amo, eu perco. A lírica seria, nas palavras do crítico Anatol Rosenfeld, “a manifestação verbal imediata de uma emoção”, a plasmação “das vivências intensas de um Eu que encontra com o mundo”[1]. Nesse encontro, “a alma que canta” se fundiria à realidade exterior, e a subjetividade do poeta absorveria tudo ao redor — o mar, a chuva, as estrelas — para falar de si, elidindo a distância entre sujeito e objeto. No poema lírico, ao menos em teoria, tudo vira eu.

A prática, no entanto, é menos pura e mais interessante. O bom poeta pode transcender o monólogo e se enveredar pelo ele da terceira pessoa (o pronome da épica e da narrativa) ou pelo tu da segunda (o pronome do drama e do teatro). É nesse país essencialmente apelativo — território da barganha e da súplica, da colisão e dos antagonismos — que moram os três poemas anteriores.

Pertencentes a autores de épocas, estilos e origens díspares, eles têm em comum o fato de estarem na segunda pessoa — se dirigem a um tu a quem tencionam persuadir à luta ou à resignação. Ao fazer isso, exercem um poder de atração singular, cuja força emana da tensão relacional típica do drama. Como numa peça, a ação parece se desenrolar em tempo real: tudo está em jogo e tudo pode acontecer.

No primeiro poema, o tu da norte-americana Laura Riding (1901 – 1991) — a ovelha negra do modernismo de língua inglesa — é o próprio eu lírico, falando diante do espelho. Se em boa parte de sua obra Riding perseguiu um virtuosismo da abstração, assumindo uma preocupação quase esotérica em transcender a linguagem, aqui a mensagem é clara, direta, veemente: não te esqueças do pó de que vieste, criatura arrogante; esquecê-lo é esquecer-se de ti e ceder à morte. (Impossível não ouvir certo eco bíblico na construção original dust, que aparece duas vezes.)

Já o segundo, o soneto mais conhecido do inglês Michael Drayton (1563 – 1631), encena o último encontro de um casal plenamente arruinado. Os volteios típicos dessa forma fixa se prestam a confirmar o fim do amor — acabou, não te desejo mais —, enunciar os procedimentos devidos — anulemos os votos e apaguemos para sempre a memória um do outro — e dramatizar a morte do Amor, com A maiúsculo, personificado em seu leito final.

Por fim, temos o arquifamoso [2] villanelle do galês Dylan Thomas (1914 – 1953), no qual o eu lírico roga ao pai prestes a expirar que lute, resista, revolte-se. Extraí o adjetivo “sereno”, que empreguei no primeiro refrão, do punhado de velórios em que estive desde 2021; usado para elogiar o semblante do morto quando ninguém tem mais nada a dizer a respeito de seus feitos em vida, ele me pareceu o contraponto ideal ao que o eu lírico de Thomas espera e cobra do pai.

O uso da morte como recurso retórico nos três poemas faz pensar se invocá-la não seria uma das poucas maneiras de pedir sem humilhar-se, ou exigir sem prometer nada em troca. A lembrança da morte, afinal, empresta gravidade e urgência ao imperativo da ação; ela situa o interlocutor no imediato, no aqui e agora, o presente eterno de onde parte toda lírica.


[1] No conhecido ensaio “A teoria dos gêneros” (in: O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 2006).

[2] O adjetivo é de Victor Heringer e está no posfácio à poesia reunida de Hilda Hilst (Da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2017).


Ilustração: Elizabeth Gould (1804–1841).

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