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The White Lotus e Desculpe te incomodar: Sujeitos da própria riqueza

por Caio Naressi
Papel de parede apresentado no hotel em The White Lotus

Caio Naressi é cofundador do FotSom e cineasta independente desde 2015. Atualmente realiza um doutoramento em cinema pela Universidade de Montréal onde pesquisa a possibilidade da transcrição da memória autobiográfica em animação.


Quando estamos falando de riqueza, estamos, em geral, falando sobre um ponto de vista promissor: um objetivo de vida que muitos (senão todos) almejam. Riqueza nos remete a um conforto publicitário quase inquestionável e hoje parecemos viver o ápice dessa busca em nossas vidas. Não julgo aqueles que procuram esse conforto de todas as maneiras, afinal é o traço social de ter “chegado a algum lugar” ou o clássico ser bem-sucedido.

Entretanto, é preciso pensar o que significa essa riqueza e de que maneira essa riqueza é o sinal da opressão dos nossos tempos. Dois produtos audiovisuais que vi recentemente me trouxeram reflexões pertinentes sobre essa questão: a série The White Lotus (Mike White, 2021) e o filme Desculpe te incomodar (Boots Riley, 2018). De duas perspectivas diferentes, os dois acabam por dizer a mesma coisa: o dinheiro é tóxico, mas ainda não sabemos viver de maneira diferente.

O compromisso com os outros humanos se tornou uma base de troca mediada pelo papel moeda. E não podemos julgá-los, afinal foi assim que aprendemos a nos relacionar uns com os outros, a partir de valores, monetários ou não. 

The White Lotus é uma série que se passa em um desses resorts cinco estrelas no Havaí em que apenas os milionários se hospedam para férias em família, lua de mel ou apenas para aproveitar de um spa. Acompanhamos alguns personagens durante uma semana e vamos vendo a forma como os dilemas vão aparecendo para eles. Seja o casal em lua de mel, que foi hospedado em um quarto mais barato que o da reserva feita, mas com uma vista mais atraente. Ou uma mulher que levou as cinzas da mãe para jogar ao mar em algum ritual de purificação.

Enfim, não vou me alongar muito na trama de cada núcleo de personagens, mas vou falar mais do aspecto geral que a série traz que é a relação que se estabelece entre as pessoas a partir do dinheiro. No livro A sociedade autofágica – capitalismo, desmesura e autodestruição (2017) do teorizador Anselm Jappe, o autor afirma que o “’dinheiro enquanto dinheiro’, como lhe chama Marx, […] tornou-se uma relação universal e passou a assegurar a mediação entre todas as atividades humanas” (p. 55). Podemos perceber isso em meio aos cenários paradisíacos da série em que uma das personagens, ao criar expectativa de abrir um negócio com uma das funcionárias do hotel, acredita que todos os problemas podem ser resolvidos apenas com uma boa quantia de dinheiro. O compromisso com os outros humanos se tornou uma base de troca mediada pelo papel moeda. E não podemos julgá-los, afinal foi assim que aprendemos a nos relacionar uns com os outros, a partir de valores, monetários ou não.

De outro ponto de vista, temos o filme Desculpe te incomodar que retrata o outro lado da sociedade, o lado pobre, o lado que precisa batalhar diariamente para acreditar, por um pequeno instante que seja, que um dia pode pagar férias em um resort no Havaí. O longa conta a história de Cassius Green (Lakeith Stanfield), um jovem desempregado que não tem outra alternativa de emprego a não ser trabalhar em uma empresa de telemarketing. Ele se rende pela sedução que as pessoas dos recursos humanos fazem da empresa, alegando aquela velha história de trabalhar sempre e com disposição, mas omitindo que toda essa disposição é para enriquecer os CEOs e não a si mesmo.

Ao entrar na empresa, Cassius conhece outros trabalhadores que estão organizando uma greve para pedir melhores salários. Porém, Cassius ganha uma promoção e, seduzido pelo aumento salarial e ascensão do status social, rende-se aos donos da empresa, furando a greve. O filme traz aspectos importantíssimos para questões sociais como racismo, condição proletária e a viralização de pautas sociais, que normalizam a precariedade da vida em detrimento de condições básicas de sobrevivência como aluguel, alimentação e dignidade. 

É com esses dois lados da sociedade que podemos entender que Cassius não engorda a sua conta bancária, mas sim os investimentos daqueles que estão no resort White Lotus, sofrendo, por exemplo, pelo roubo de um bracelete de 75 mil dólares, dado de presente para aliviar a dor de uma traição entre marido e esposa. Como afirma Jappe: 

Tudo quanto os dominantes deviam até então impor aos dominados por meios coercitivos começou a ser interiorizado pelos próprios dominados e a ser executado por eles. O sujeito moderno é precisamente o resultado desta interiorização dos constrangimentos sociais. Ele é tanto mais sujeito quanto mais aceitar estes constrangimentos e conseguir impô-los às resistências que provêm do seu próprio corpo e dos seus próprios sentimentos, necessidades e desejos. O que antes de mais nada define o sujeito é a violência exercida contra si mesmo. (p.61)

Em The White Lotus não acompanhamos apenas a vida dos hospedes, mas também a dos funcionários, que precisam estar sempre sorrindo e satisfazendo todas as necessidades sem o menor questionamento. Logo no primeiro episódio já conhecemos a dinâmica parecida com a de Cassius Green. O que importa são os clientes e é preciso seguir o roteiro, como bem diz os sorridentes recursos humanos do longa, não podemos fugir disso: “o sujeito teve de expulsar de si mesmo para aceder ao estatuto de sujeito” (p.65), como pontua Jappe. Precisamos nos manter cada vez mais alinhados a um roteiro em que ignoramos nossas necessidades e estamos sempre a acenar positivamente a tudo que nos é colocado, enquanto nossas angústias de sobrevivência dão espaço aos dramas existenciais pautados pelo excesso de dinheiro.

… sem dinheiro somos o elo mais fraco e que devemos nos sujeitar a qualquer condição em troca de um teto e um pouco de comida (…), enquanto outros se beneficiam desse desespero geral.

O lucro nunca foi tão importante e nossa vida nunca foi tão pautada pela nossa capacidade produtiva dentro de uma lógica capital. Sinto que a pandemia, diferente de nos aliviar dessas questões, nos enfiou o dedo na ferida e mostrou que sem dinheiro somos o elo mais fraco e que devemos nos sujeitar a qualquer condição em troca de um teto e um pouco de comida (nem que seja aquela que está sempre em promoção), enquanto outros se beneficiam desse desespero geral. Afinal, “[n]uma sociedade de mercado capitalista, a reprodução social é organizada em torno da troca de quantidades de trabalho, e não em torno da satisfação das necessidades e dos desejos” (p.20). 

Tanto a série quanto o filme abordam outras diversas questões dos nossos tempos que não me alonguei muito por aqui, mas que valem ser conferidas. Filme e série são realmente muito bons e muito atuais nas discussões sobre o absurdo dos nossos tempos. Entretanto o que me saltou aos olhos foi exatamente essa condição em que todos estamos subjugados a encontrar meios de sobreviver enquanto uma pequena parcela da população ainda desfila em tapetes vermelhos com roupas que nos custam alguns anos de trabalho, como se fosse algo natural. Afinal, até quando o glamour vai ser glamour e não uma coisa horrenda e opressora?


TEXTOS CONSULTADOS

JAPPE, A. A sociedade autofágica: capitalismo, desmesura e autodestruição. 1ª edição ed. Lisboa, Portugal: Antígona, 2019.

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