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Verde Imortal

por Gabriel Cruz Lima
ilustração de georgia ayrosa para texto de gabriel cruz lima. folhetim na ordem do dia, capítulo 12

Gabriel Cruz Lima é jornalista pela Faculdade Cásper Líbero e graduando em Letras pela Universidade de São Paulo. É autor de “O Último Romântico” (BAR Editora, 2020). Assim como o São Paulo Futebol Clube, está de volta no coração dos emocionados e a um passo de um título relevante.


Os Nezual são um povo nômade proveniente do lado esquerdo do Rio Piatú. A tribo ocupa um terço da curva frontal da bacia do Araçó e é exímia caçadora e coletora de frutos. Sem nenhum indício aparente, entretanto, o grupo sumiu, e poderia ter sido esquecido, não fosse a interpretação sobre o legado de sua arte, apenas descoberto mediante a aparição do último dos cinco tomos do maravilhoso diário de Chicholino Segundo.

Diferentemente de alguns dos povos vizinhos, muito famosos pela herança presente na cerâmica de canela azul e pelo legado dos doces com a raiz de palmeira brava, os Nezual eram e são um povo que zela pelo seu tempo. Dessa percepção temporal, por vezes descrita como insólita pelos especialistas da área, veio o termo transfantasmagórico, cunhado pelo professor emérito em Ponto de Vista Estético Albonzio Catanhede.

Se concordo com boa parte das ideias expostas pelo catedrático da Universidade de Madrid em seu livro, Na Ordem do Dia, é necessário, entretanto, tornar público o novo material para a revisão crítica dos termos. Assim, a última parte dos diários de Chicholino Segundo aparece no momento correto como método de adensar e explica o que era o tempo na vida dos Nezual.

A ausência anterior do último caderno de Chicholino Segundo se explica: guardado pela família, só veio a público depois de um longuíssimo espólio das riquezas. Ele era, entre as propriedades, quase como uma nota de rodapé destinada como acessório para quem se interessasse pelas curiosidades da família. Logo, a fala verborrágica de um homem com sinais avançados de dementia maritimis – doença mental catalogada como exposição prolongada à água do Rio Piatú – veio parar nas mãos deste neto.

O diário final retoma a aventura vivida por Chicholino Segundo, meu avô, anos depois do seu quarto capítulo. Ele, já em estado avançado de delírio, com uma frase aparentemente febril, abre e fecha os relatos: “Apenas na metade da lua cheia de senero era possível achá-los vivos. Querem – ou queriam – ser descobertos no seu estado de morte: a festa de anu-macu”.

Antes de explicar o porquê do desenho que sucede a essa fala, vale retomar a denominação temporal adotada no local para tentar compreender que, de fato, meu avô dissera aquelas frases aparentemente desconexas para além do delírio.

Senero não corresponde a uma data no calendário gregoriano, mas, como toda a documentação recolhida a respeito do povo confirma , é um ritual de cortejo do tempo (ver: Vilas Boas e Cavalcante; Moussa e Colucci). Entendemos agora que ele vem do chamamento do oráculo mor da vila, doravante denominada nezu-nezu.

O senero e a função de nezu-nezu como suma sacerdotisa do Grande Al aparecem no quarto tomo por meio das lendas compiladas por Chicholino Segundo. Cruzando as referências lendárias com esses novos fatos, chega-se à conclusão de que a escolhida nezu-nezu tem um critério definido: é a terceira mulher da vila com mais filhos.

A lenda da Bela Sadu é clara: a primeira se apaixona demais com a morte da sua prole e enlouquece; a segunda geralmente se mata diante da possibilidade de ver seus filhos partirem na festa de anu-macu; a terceira, como é de senso comum, sabendo que a graça e o orgulho de morrer cairiam sobre seus amados, aceita, com a honraria de cicuta de jaca mole e uma coroa de lírios de fogo da onça, a clava do anu-macu. Se à nezu-nezu cabia antecipar o tempo, ao seu par masculino, nezu-cotil, caberia o banquete.

Tudo nasce na terra próxima ao Piatú, sendo esta a mais rica do planeta em frutas e bichos. Bastava estender a mão ou a tramela armada ao mato para que estivessem servidas as porções. Como tudo dava em abundância no seio de Al, restava a alquimia. Dessa forma, os homens se dividiam para ver quem faria o melhor cozido, a sobremesa mais doce. Assim, quem fizesse a terceira torta mais doce, por simetria ao grande Al, e escolhido pelo paladar da própria nezu-nezu, seria o responsável por preparar o banquete de toda a vila no anu-macu, além de selecionar o ilustre visitante que conheceria a cultura e dançaria a festa de seu povo. 

Assim os papéis de gênero eram bem definidos: ãs mulheres ficariam responsáveis pela honra da vida e morte, enquanto os homens fariam a nutrição da vila, sempre de forma complementar e unívoca no seio de Al.

Dessa maneira não era menos importante o ritual de parassimpatia para o equilíbrio da tribo. Assim que um habitante nascia, seu nome ia direto para o tecotal, sistema feito por duas cabaças de barro, vindas do fogo e lama da Grande Explosão e que continha o registro de cada uma das pessoas divididas por gênero. Como não havia diferença etária, não era problema a repetição de pares. Os nomes eram sorteados e devolvidos aleatoriamente, o que fazia com que cada um multiplicasse a chance de ter mais de um parceiro.

Uma vez formadas as duplas, trios, ou, como conta a lenda da bela Sadu, quartetos, eles deveriam começar o ritual de parassimpatia: preparar durante toda a vida um quadro e ao final oferecê-lo, antes da morte na grande festa, um presente a nezu-nezu e nezu-cotil. E o presente era sempre o mesmo, um quadro verde, sua essência.

A transfantasmagoria, portanto, origina-se desses costumes e sua definição, de acordo com Catanhede (p.245, 1998), é: “[A] transmutação dos homens em objetos. Nele, a substância Al retorna ao todo verde da vida de maneira real, simbólica e imaginária”.

Acredito que a definição do professor Albonzio estaria correta caso ele também tivesse acesso ao que ocorre depois do final do quarto capítulo e que, com certeza, altera a ideia de transfantasmagoria de maneira trágica.

Em boa parte dos relatos do meu avô, o povo Nezual não aparece como uma preocupação. Chicholino Segundo fala mais – e talvez até com mais propriedade – sobre o amor dele por minha avó e de que maneira os dois se confundem, o desejo por essa professora de literatura era também o mesmo dos livros. Fala muito longamente da vida na beira do rio e de como descamar um peixe. Tudo o mais segue o curso do Piatú até a aparição de um homem de fala macia e desconectada, amigo repentino, sempre jovem, Roberto – ou Kotal.

Na beira do cais, ele vai descobrindo e refazendo a miragem de nezu-cotil. O diário conta em detalhes como se dá o famoso nó escocês, a discussão sobre a volatilidade da lua, as lendas de um povo muito jovem e antigo, como é possível encarnar espíritos em objetos e especialmente o porquê, ao fim de tarde, enquanto tomavam suco de abacaxi com hortelã, Roberto aludia a uma festa proibida, da qual ele nunca sabia data, hora e, tampouco local, mas afirmava categoricamente como meu avô iria gostar do furdunço. Fazia o convite dia-sim e outro também, oscilando de acordo com os desígnios lunares. Mais ainda, se ressentindo todas as vezes em que, por acaso, Chicholino Segundo, meu avô, parecia incerto da sua vontade de acompanhá-lo.

 Em um entardecer depois da pescaria de ambos, lua cheia de fartura, Chicholino Segundo soube a verdade sobre o amigo. Assim que pararam na mercearia do Jeremias e antes da jarra chegar à mesa, percebeu que o olhar do amigo andava distraído, como se tivesse urgência de sair dali. Naquela tarde de 05/03/1998, data riscada no diário, meu avô afirmou da pressa de Roberto, que mesmo com a abundância de peixes parecia inquieto. Como não media as palavras, Chicholino Segundo (meu avô), perguntou, de bate-pronto, o que estava acontecendo com o amigo. Roberto, em uma vazão estranha, revela sua identidade e diz as palavras que motivam toda a discussão feita pela literatura de Albonzio:

— Você acredita em fantasmas?

Dali em diante, no quarto tomo do diário, só há a marca de folhas rasgadas e um borrão avaliado pelos legistas como sangue. Chicholino Segundo, desbravador que não tive o prazer de conhecer em vida, diz que as páginas ficaram perdidas no caminho de volta.

Mesmo com a marca do rasgo recente, registro algumas páginas do quarto tomo, em que Chicholino Segundo descreve as palavras de Roberto sobre a lenda da bela Sadu.

Sadu nascera já mulher feita. E seus olhos brancos, efeito deletério e congênito, eram, dentro da tribo dos Nezual, considerados sinal de fortuna: os doces mais gostosos estariam reservados ao seu paladar, os filhos mais fortes seriam os seus e sua morte seria a mais maravilhosa de todas. Do tecotal lhe viriam três companhias: Cututa, Buriri e IIn. O primeiro deles suspenderia o véu de sangue de Al; o segundo traria a sensibilidade do grande Al; enquanto o terceiro faria do seu povo escolhido, os Nezual, um pedaço do atemporal. Da união dos quatro nasceriam milhares de filhos e um quadro maravilhoso, o mais bonito de todo anu-macu e sua morte seria registrada por outro mundo, nas franjas do tempo.

A lenda de Sadu foi colocada de maneira fragmentária e o exercício de coligar pedaços esparsos é resultado louvável do próprio Catanhede. Está correto: o quinto excerto não cita diretamente a cosmogonia da bela Sadu.

Assim, o exercício compilado do professor termina no mesmo instante em que acabam os registros dos quatro primeiros diários de Chicholino Segundo, um adeus à minha avó junto do aviso de uma viagem para bem longe.

A continuação é esparsa e se assoma à dementia maritimis. Junto aos rabiscos de palavras, alguns desenhos justificam toda a noção temporal e complementam a bibliografia.

Dos rabiscos, vale chamar a atenção para o termo cornucópia. Ele se repete aproximadamente 37 vezes, 12 delas acompanhadas pela palavra anu-macu. É possível inferir, acredito, que o banquete de Kotal era um jardim de delícias infinito.

O desenho, entretanto, parece revelador sobre a cultura definitiva dos Nezual. Chicholino Segundo desenha uma agulha debaixo da pálpebra, no exato momento em que o alfinete passa o globo. O líquido rosa escorre desse olho furado. Uma mulher martela um prego no tornozelo do marido.

Minha teoria, portanto, é mais simples e mais direta em relação à ideia de que a transfantasmagoria fosse alegórica. Os quadros verdes deixados como ato final do anu-macu são os próprios Nezual.

Para Catanhede, o ato de pintar quadros durante a festa era uma representação, enquanto o povo seguia sua vida de coleta. Faz-se a obra para continuar vivo.

Mas, se isso fosse verdade, não haveria explicação para o fato de que nenhum de nós encontrou outro nezu-cotil, ou ainda, como Sadu já nasce mulher.

Logo, o que ocorria de verdade com o povo dos Nezual é uma morte contínua: morrer sempre para não morrer nunca, de modo que eles não só se suicidavam como viravam o próprio quadro pintado. Transfantasmagoria não é imantar um objeto consigo mesmo, e sim torná-lo um só, unidade com Al, no tempo em que tudo é verde e morte.


Da redação: este é o décimo segundo de uma série de 16 textos do autor Gabriel Cruz Lima. O folhetim sai toda sexta neste mesmo portal (Aboio) e nesta mesma hora.

As ilustrações são de Geórgia Ayrosa.

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