• 0

    Frete grátis a partir de R$ 110

A grande televisão

por Gabriel Cruz Lima
ilustração de georgia ayrosa para texto de gabriel cruz lima. folhetim na ordem do dia, capítulo 16

Gabriel Cruz Lima é jornalista pela Faculdade Cásper Líbero e graduando em Letras pela Universidade de São Paulo. É autor de “O Último Romântico” (BAR Editora, 2020). Assim como o São Paulo Futebol Clube, está de volta no coração dos emocionados e a um passo de um título relevante.


Diziam no bairro que na casa de Maria nunca se desliga a televisão e, mesmo assim, não se tem notícia de que ela tenha qualquer gato ou assinatura. Porque sou um profissional humanitário, fico pensando como ela leva o tempo.

Notícia ruim viria a cavalo, sabemos dessa forma que ela não contratou o serviço do outro lado da rua. Sabemos, porque não é o tipo de coisa indiferente: por meio do padeiro, ou da cabeleireira, chegaria ao nosso ouvido o rumor, e sua confirmação, ela está conosco agora. Seria muito ruim, sim, pensando de cara, a humilhação não daria gosto para trabalhar, guerras vem e vão, mas algumas derrotas são para sempre. E ficaria ainda aquela coisa de gozação en passant: a mão tapando a boca dos homens cochichando na esquina, trombadas em uma ida ao mercado, até mijo, bombinhas na porta do estabelecimento poderiam acontecer. Não que a gente pensasse em fazer tudo isso como aqueles brutos, mas eram possibilidades, melhor prevenir do que remediar.

Nossas lojas se colocavam frente a frente na rua principal do bairro e o ambiente deles era igual ao nosso. Um salão vazio com uma porção de mesas e cadeiras, uns banners com a foto do Selton Mello e um bebedouro de garrafão. Algumas televisões em canais diferentes para que a gente pudesse falar melhor da programação, ou, quem sabe, uma distração institucionalizada. Quando não saíamos para trepar em lajes e quebrar gesso mal feito, passávamos as manhãs zapeando e zapeando a programação. Primeiro passando por canais para aprender de cor a programação, a fim de ter tudo na ponta da língua como vantagem administrativa, depois para que a passagem do dia se desse mais rápida: umas crianças degolam umas às outras, policial mata jovem dentro de casa, estupro de menina inconsciente, muita música e piada. A gente trazia comida e baralho de casa, escondia a mistura, roubava cartas e vivia uma vida justa para sermos a melhor versão de nós, muito melhor do que nossos inimigos.

Havia uma meta de produtividade colocada na parede. Um quadro de vidro do tamanho de uma folha sulfite com uns números espalhados em formato de gráfico, mensagens para nos deixar mais felizes, o nome de Maria circulado em vermelho e a foto 3×4 do funcionário do mês. Ninguém entendia as oscilações dos números e, fora a frase peremptória Deus ajuda quem cedo madruga acompanhada do retratinho do empregado favorito, só o círculo ao redor do nome Maria não era um engodo; apontava a decepção, não conseguimos chegar até a cliente. Fico pensando como ela vive a vida sem a companhia de ninguém, uma voz ao fundo como que falando, ou gritando, sendo ruído dos nossos dias.

E se nesses métodos oficiais nossa incapacidade era circulada em vermelho, do gato talvez fosse ainda mais evidente, porque o pirata é um sujeito prestativo e vaidoso. Instala a antena e vende o momento, trabalho forte de personalização. Se os catálogos online oferecem tudo o tempo todo, nós oferecemos a curadoria. O pessoal em vez do total.

Assim, em vez de todo mundo trabalhar com o pacote completo de todos os canais, nos dividimos de acordo com as habilidades de cada um. Por exemplo, o Adaílton Parlevú, casado com a moça haitiana, é famoso por liberar apenas os canais de filmes franceses, já o Gerson coloca o código no chip dele com as credenciais de desenhos japoneses, e acho que ele é quem faz mais sucesso, para o bem ou para o mal tem sempre muita ação, mulher trepando em corda, coisas de adolescente colegial. Eu não me considero um mau funcionário, porque tenho um produto muito forte, libero só os pacotes do leste europeu sem legenda. Muitas vezes ando de blusa de pelica imitando pele de urso para me dar credibilidade e poder entregar meu cartão com o nome bordado e o desenho de um pinguim. Gosto muito da palavra proatividade.

Também me vejo às vezes como o líder, muito embora não exista nada além da figura de um dono meio gordo, meio careca, meio ausente, o que me faz ter tempo de baralho, televisão e de confabular maneiras de abordar Maria.

Se deixar um cartão com o porteiro do prédio dela se mostrou pouco efetivo, porque muito comum, imagino como posso chegar sem ser notado, e, ao mesmo tempo, destacar minhas iniciativas, falar de filmes europeus sem soar pedante; assertivo, sem desperdiçar recursos, misterioso, sem ser entediante.

E como? Cheguei a uma conclusão simples, porque na simplicidade às vezes se escondem soluções brilhantes. Fácil: aumentar o número de instalações fantasmas para que eu pudesse ter mais tempo para acompanhar a rotina de Maria durante uma semana. Era o que parecia: cadastrar no sistema uma porção de nomes falsos, um endereço fictício, levar uma caixa de ferramenta no carro e assim eu teria uma justificativa para passar mais tempo na rua, precisamente sete dias.

Eu gosto muito da palavra proatividade. Tanto que, no dia anterior à primeira noite de vigília, cozinhei marmitas para a semana toda. Porque acho que sou francês, aprendi a colocar creme de leite em tudo, arroz com creme de leite, feijão com creme de leite, ovo com creme de leite, creme de leite com creme de leite. Não tenho azia e sou resistente à lactose, o que me faz apenas mais feliz enquanto fico de tocaia.

 E para toda boa tocaia, comprei cadernos, canetas e lunetas, também fiz questão de improvisar um gorro que cobre o rosto, nunca se sabe, ainda se tratando de um mesmo bairro, o quanto alguns pedestres podem ser bisbilhoteiros, alegar que não estamos trabalhando. De touca ninja não me reconheceriam, comendo à parmegiana com creme de leite à guisa da tempestade, ouvindo os falantes gritando pérola negra eu te amo, ou apenas com um binóculo no silêncio do meio-dia, um sol metálico da cor do pára para-choque do carro da firma, anotando placas, montando diagramas, desenhando pintos no caderno. Também pensei em comprar um bigode falso, mas isso seria admitir a pouca barba, sinal da idade, e que, nesse ramo de negócios, poderia soar como inexperiência. Prodigio: eu sou o melhor vendedor de TV a cabo falsificada e original da América Latina.

É com essa energia que estaciono o carro no meio-fio no primeiro raio de sol da segunda, de frente a um restaurante, caso enjoe das bolachas, a dois quarteirões de um boteco, caso precise de banheiro e pia, a trezentos e quarenta e três metros do portão dela.

Eu poderia dizer que a distância é precisa, porque a passada humana tem cerca de setenta centímetros, um pouco mais, um pouco menos, mas em média, a fim de cálculos, é o que os especialistas usam. E como Maria é um mulherão, a métrica seria perfeita, tênis sobe, tênis desce, pé ante pé em uma caminhada hexagonal. Mas as coisas são ainda mais precisas, olhei no GPS para me certificar de quantos graus eu colocaria no binóculo.

Rimos, rimos muito, depois não rimos mais. Fiquei pensando na piada que eu tinha acabado de ouvir no rádio sobre a falta de absorvente de uma menina, dizendo que era só colocar uma rolha na buceta. Tudo bem explicado: imagina só se a gente resolvesse esse problema com um pedaço de cortiça, não ia sobrar pro vinho, ou o vinho viria com gosto de sangue. Ri imaginando uma fila de mulheres recebendo um toco de madeira pra deixar como estaca dentro, gargalhei que eu poderia, sem querer, a título de queijos e vinhos, beber sangue com a Maria e depois eu parei.

Assim eu passei o segundo e o terceiro dias, mascando chicletes, tomando latas de energético e comendo marmitas, fiquei nervoso, creme de leite ficou passado, tive dor de barriga e fiquei pensando em como a vida poderia ser injusta com o contribuinte cedendo dinheiro para absorventes. Será que a Maria sabe do que estamos falando no mundo? Como uma pessoa sem televisão paga poderia entender o que nós queremos dizer.

No quarto dia fui obrigado a renovar meu estoque de comida e me perdi no mercadinho do bairro. Olhei para as prateleiras sem indicação, ou ainda, com os nomes trocados com as coisas, amaciantes e leites moças poderiam se confundir, chocolate e cianeto. E passando a mão por uma embalagem colorida, senti a nuca queimando de olhos alheios, os inimigos do outro lado da rua não vão me parar jamais. Penso em mostrar uma das minhas pistolas, a mais dura delas, só para espantar os caras. FIquei com a mão no leite, calculando quanto custa um arremesso. Sem nem virar o corpo, não vejo nenhum dos bandidos que querem roubar o meu prêmio de mim, só Maria. Maria no espelho côncavo da saída, olhei do outro, Maria, bolacha, Maria, amaciante, Maria. Aquelas mulheres me estranhavam e me eram familiares e a bochecha rosada delas e meu nariz sangrando e meu braço mole. Eu não tinha guardado o rosto dela ou tinha muito, porque o visto na rua era exatamente igual a tudo da televisão, californiana na ponta, o sorriso de artista, achei que ia morrer se ficasse ali com vertigem. Como não sabia onde estavam as coisas, comprei de tudo um pouco e a caixa estranhou, será meus olhos fundos, minha touca ninja, ou porque eu não levo sacolinhas plásticas.

Voltei para o carro e, já mais calmo, pus em prática o plano assertivo feito enquanto não desenhava uma bomba explodindo numa chapeleta: abordar o porteiro e convencê-lo a me deixar entrar na casa de Maria.

Se ao final daquele quarto dia não fosse a escala desejada, eu esperaria até que fosse possível falar com o meu amigo um certo Carlos. Assim quando chegasse a hora e vez, saberia abordá-lo, oferecer uma lata de leite condensando que, como todo mundo sabe, é o ponto fraco de todos os porteiros.

E chegou o quinto dia noturno e acho que eu esqueci o que ia dizer, mas disse mesmo assim, quando já não tinha tanto tempo para executar a missão de Maria e paciência para ouvir os homens do rádio repetindo meus pensamentos. E ele atravessa a rua para trocar de turno, cheguei no cangote dele e saiu um grunhido dizendo meu nome não é Carlos e assentido pelo cano do metal nas costas.

Como a vista do carro desse para o prédio, e luz aparecesse poucos minutos após as entradas de Maria, divergi qual o apartamento certo, o primeiro da ponta, andar, o sétimo. Chequei meu visual no espelho do elevador: casaco de pelica, bombom com um alfinete apregoando meu cartão com o pinguim em relevo, só deixar na porta de Maria e boa, o resto se faz sozinho, vejo meu nome desenhado no painel, o maior funcionário do mês.

Olho para o capacho escrito bem-vindo e, sem querer, limpo meus pés como quem vai entrar. Como nos desenhos animados, checo se, por acaso, deixaram a chave debaixo do tapete.

No primeiro pé do breu do apartamento, trato de desamassar o embrulho de celofane, colocando-o em cima de uma mesa coberta com um pano bordado de tigre. Mesmo quando não me veem chegar, venho manso, posso até ser considerado gentil, domo feras como essa tigresa de unhas negras que está na toalha. Deixo o chocolate em cima da garra esquerda da estampa e me vem a ideia de que para fugir do bicho, tenho que comer o chocolate e deixar só o cartão.

Antes que eu termine de enfiar tudo na boca, uma luz se acende às minhas costas. Mastigo mais rápido para que os dentes batendo não ecoem na cabeça, quem tem cu, tem medo. E vejo Maria sentada no sofá, de frente para uma tela enorme prestes a engoli-la. Encrustado nas sombras, engasgo e demoro para destacar das sombras o contorno de plástico e vidro, é a televisão.

Já menos assustado, me acomodo ao seu lado para ver o que ela vê e fico puto: o ruído branco. Fico ali, esperando que a qualquer minuto uma imagem vá aparecer para eu poder puxar um papo, falar da situação inusitada, ela precisa de alguma coisa para se divertir, uma companhia.

Mexo na minha jaqueta para ficar mais confortável diante de algum raio de sol e sinto outro cartão no bolso, será que estendo a ela o convite definitivo para uma vida diferente e explico como seria importante para minha carreira se ela, e mais ninguém, pudesse me aceitar, matar os inimigos e conquistar a mocinha como fazem nos melhores filmes. Ou ainda, como era fundamental que ela soubesse das notícias do mundo, como vão as coisas e se os dias, eles passam e continuam. Ela permanece com o rosto virado à tela.

Quero chacoalhar seu cabelo e dizer coisas muito inteligentes. Falar que é muito melhor viver uma experiência com o risco de vida, Maria. Ou ainda dizer sobre o tempo para fazer as coisas de forma diferente e sim, assinar o pacote premium e chorar quando sequestram empresários e querer justiça e vingança, bater palma para as bailarinas no palco quando ficarmos tristes que a semana acabou.

Não digo nada, caio no encosto e assisto junto com Maria o espetáculo, o ruído suave tomando conta do tempo.


Da redação: este é o décimo sexto (vulgo, último) de uma série de 16 textos do autor Gabriel Cruz Lima. O folhetim saiu toda sexta neste mesmo portal (Aboio). Confira os outros capítulos clicando aqui.

As ilustrações são de Geórgia Ayrosa.

Leave Your Comment

faz um PIX!

Caso dê erro na leitura do QRCode, nossa chave PIX é editora@aboio.com.br

DIAS :
HORAS :
MINUTOS :
SEGUNDOS

— pré-venda no ar! —

Literatura nórdica
10% Off