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Esconder o croquete (volume 2)

por Gabriel Cruz Lima
ilustração de georgia ayrosa para texto de gabriel cruz lima. folhetim na ordem do dia, capítulo 13

Gabriel Cruz Lima é jornalista pela Faculdade Cásper Líbero e graduando em Letras pela Universidade de São Paulo. É autor de “O Último Romântico” (BAR Editora, 2020). Assim como o São Paulo Futebol Clube, está de volta no coração dos emocionados e a um passo de um título relevante.


Fico pensando se essa coxinha vem com sachê e tesoura. E se quando o garçom trouxer o sachê de ketchup, aqui não se fazem mais bisnagas, vai soar muito ruim se eu pedir uma tesoura para cortar. Ele não vai trazer a tesoura e eu não quero parecer chato, mas tenho uma coroa no dente e acho que meu problema no metacarpo afeta em rasgar ou cortar com faca a embalagem. Tem que ser tesoura. 

Olho para o copo de suco de abacaxi com hortelã e o suor do copo é o meu por inteiro. Daqui da calçada consigo sentir o radiador do caminhão estacionado entregando fardos e fardos de uma bebida escura, geladinha e gaseificada. Não é a Coca-Cola, porque eles não estão mais me patrocinando. Também são 38 graus de febre no asfalto, recorde para uma noite de happy hour, avalia a televisão enquanto mostra uma panorâmica dos bares pelo Brasil. Minha testa pinga de vontade: quero abordar a especulação de que a filha caçula do Roberto talvez tenha saído com um cara vinte anos mais velho.

A coxinha chega e com ela vem a tesoura. Amém. Enquanto os colegas falam sobre o problema no ar-condicionado do sétimo andar, eu vou sentindo o dente enfiado na bunda sangrenta da coxinha, gostoso demais, se me virem com a mão na massa talvez desconfiem do que estou pensando. Enquanto termino de limpar o farelo do rosto e a gordura dos dedos, Roberto, de pé ao meu lado no meio fio, dá risada sobre uma história de uma garota no carnaval que apanha da polícia.

Termino a coxinha e me levanto para papear sobre algum problema na tubulação do ar. A fumaça do radiador do caminhão e da nicotina se interpõe a uma garrafa bem gelada, uma fala e outra. A gente reclama da falta de dinheiro do Vilas Boas e bebe um gole, outro gole e fica mais aberto. O relógio se estica e os outros homens vão se retirando conforme a noite se anuncia. Ficamos só eu e Roberto. Provoco:

— Está tudo bem em casa, Roberto?

Ele respira e abaixa os ombros, o suspiro sai com bafo de cevada e responsabilidade. Estendo outro cigarro para ele. 

— Minha mulher acha normal e diz que eu estou sendo puritano por ciúme, mas é esquisito, vamos falar a verdade. Até hoje eu não entendo como tudo aconteceu, você já deve saber, a Margarida anda falando que um cara mais velho quer passar em casa, estão cogitando até que ele vá para Mangaratiba no final do ano com a gente. Eu sou contra, vai que ele é mais um desses caras que a gente conhece aí pela rua, nunca se sabe.

Ele acende o cigarro dado antes de continuar a contar sobre os desamores da filha e a brasa colore seu rosto. Reparo em uma ruga ou duas no seu rosto, o cabelo preto com um risco grisalho ao lado, muito semelhantes a mim, assim como o anel de casamento. Dos olhos junto ao anel, percebo também uma cicatriz pequena no dorso da mão, é ele aquele menino descendo a maior ladeira do bairro, a proibida, e que, em um ato de coragem, não chorou ao quebrar o mindinho, ou ainda, o que nos defendia dos garotos maiores revidando com as mãos a pedra do estilingue atirado nos menores? Solto o fôlego e a nuvem nos envolve. Talvez fôssemos amigos e eu não tivesse noção até aquele ponto. Antes dele contar, peço mais uma coxinha para ouvi-lo. 

Sem que chegasse a coxinha, ficamos trocando tragos e retomando o comentário do Adalberto sobre o ar-condicionado, sabendo que a ideia do colega não era só ruim, era desconectada do grana-curta-Vilas-Boas. Rimos, rimos muito, depois não rimos mais. A gente parou em um ponto anterior ao silêncio, cortado pelo meu dá licença, vou ao banheiro, emendado por um, aproveito para ver se eles foram matar o frango dessa coxinha.

Em um lavabo improvisado na parte superior do boteco, faço espumas no sabonete para imitar um esfoliante e aplico cuidadosamente na área do rosto, longe dos olhos e do alcance das crianças. Passo a água tirando a nódoa, besuntando retroativamente aquela coxa comida pelas beiradas. O olhar ácido e adocicado me perseguindo na vitrine de outra padaria. A gente pensa muita coisa quando tá com fome. Inclusive em vomitar.

Retorno ao banheiro e coloco os bofes pra fora diante da lembrança. A relação é consensual entre nós dois até certo ponto, a alta quantidade de sódio me embrulha o estômago de tal modo que tenho certeza do bater de asas da borboleta como a nova úlcera do momento. Fico ali meia hora entre um gorfo e a tentativa de dar descarga. A merda fede mais quando não desce, mas é aliviada também pelo cheiro de praia da pedra sanitária, talvez de Mangaratiba. Vamos tocando, a verdade é simples: gosto muito de almoçar e jantar coxinha, mas meu cardiologista não permite. Mesmo que a fritura seja nova e de boa procedência, afinal o local é de indicação de Roberto, sempre dá uma azia em quem já tem problema enzimático avançado no fígado.

Mas talvez seja justamente esse elemento que faz a coxinha tão gostosa, o sabor prosaico e sabidamente desabonado pela idade. Da água salobra da pia faço um gargarejo e meu cuspe sai esbranquiçado e viçoso, vivem me reprovando, mas quem, no meu lugar, não esconderia um croquete se pudesse. 

Desço as escadas e pergunto ao primeiro garçom se sai ainda hoje da frigideira meu salgado, se vai demorar mais um par de meses até que eu possa comer de novo. Ele aperta os olhos com as mãos e, me conduzindo além da cozinha, aponta para a mesa em que Roberto está sentado.

Volto para lá com vontade de pedir desculpas pela demora e tudo o mais. Fico cinco segundos olhando para a coxinha intocada e seus sachês, e só depois vejo que Roberto está ali de papo pro ar tirando um cochilo.

Não penso em acordá-lo, porque isso me previne de disfarçar. Mas falo com ele todas as coisas. Me explico, me recomponho e conto com detalhes sobre a maneira como fiquei sabendo da história da Margarida. Falo profundamente, colocando até minha aliança em cima da mesa e a mão no estômago para gesticular melhor. Com a mesma precisão com que tento demonstrar o que sei, vou preparando o guardanapo para a coxinha. 

Pego no cabo da tesoura e espirra sem querer um tantinho na borda da lâmina. Cortar com tesoura ajuda nisso, se fosse feito tudo isso de supetão com os dentes. Abro as pernas da tesoura com os dedos e lambo o ketchup que ficou no meio das pernas. Enquanto dormem os meninos, eu deixo a tesoura enfiada no bolso de sua camisa. E vou por aí. Estico a massa de batata que se desfaz na minha mão, já com os dois dedos no interior para ver a temperatura: nem tão fria que não dê para comer, nem tão quente que a gente precise queimar a boca. Mordo de bocado em bocado a borda da coxinha, sentindo minha própria saliva misturada à acidez. Como de boca cheia com a certeza de que ele não vai acordar, sugando até os fiapos presos no dente. Secos minhas mão no guardanapo, atento para qualquer resíduo nas digitais. Ninguém pode dizer que sou insosso quando o assunto é coxinha.


Da redação: este é o décimo terceiro de uma série de 16 textos do autor Gabriel Cruz Lima. O folhetim sai toda sexta neste mesmo portal (Aboio) e nesta mesma hora.

As ilustrações são de Geórgia Ayrosa.

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