Diego Rezende nasceu em Viçosa (MG) no final de 1986. Atualmente, mora em Belo Horizonte (MG). Possui doutorado em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Publicou Até que o infinitivo escrever tome arranjo em minha extinção (Urutau, 2022), Todo oceano transporta um incêndio (Urutau, 2020) e Livrou-se (Funalfa, 2015).
0 anos 6 meses 15 dias
a água desaba com faíscas
até o ralo
no colo
Antônio acompanha
com surpresa
a feitura escorregadia daquela substância
transparente
e fluida
o dilúculo rasteja pelas margens da persiana
deixando uma borda alaranjada na parede
ele olha a borda e
após alguns segundos
sorri
quando vê
de longe
o líquido quente atravessar o pó de café
e criar uma fumaça temporária
um vapor com cheiro
abre levemente as pálpebras
como se estivesse ajustando
a claridade
para captar aquela imagem
fantasmagórica
1 ano 4 meses 3 dias
há isso que nos vincula
esse traço inapreensível
inquietante
laborioso
isso que nos separa
esse rasgo sem lugar
arredio
abissal
surpreendente
e essa ternura desvairada
que me escapa
por ser grande demais
2 anos 1 mês 28 dias
a febre chega durante a noite
vem do interior
movimenta composições vitais
toco suas mãos
estão quentes
um organismo engendrando calor
para sua sobrevivência
existe algo da febre que é de uma insistência descomunal da vida
tentando se manter
mais e mais viva
isso me emociona e angustia
e só posso fotografar o que me emociona
e angustia
fotografo a luz que tangencia a insistência descomunal da vida
2 anos 7 meses 11 dias
Antônio abriu os olhos
havia o escuro denso
tangível
e o murmúrio
ao longe
ficamos deitados no tapete do seu quarto
esperando o dia amanhecer
a claridade veio
lentamente
desvendando os espaços de sombra
como uma amálgama viva
foi então que um sentimento
fagulha
ainda sem nome
me arrebatou
uma cintilância volátil
que foi esculpindo contornos
de alegria
a alegria
apenas
de estar presente
ali
onde nós estávamos
Desenho de Ariyoshi Kondo.