barritos na sala

por Renan Lima
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Ninguém sabe ao certo como ele chegou. Distraídos, perceberam gradativamente a sua presença. Fato curioso e até um pouco intrigante, como não notaram um ser dotado de tamanha corporeidade estabelecer-se logo ali, bem na sala de estar? Bom, é provável que tenham o notado desde o princípio, mas preferiram adiar para um futuro incerto a discussão sobre o visitante exótico. Não os julgue. Pessoas procrastinam situações extremamente problemáticas até o último instante, por que, então, estariam eles ávidos para mandá-lo embora? Logo ele, tão fofinho.

É verdade que o bicho já fora mais afável, especialmente nos primeiros dias. Bem alimentado e com as necessidades básicas satisfeitas, ele não ligava de ficar lá, sentado, quieto, apenas existindo a poucos metros dos dois. Eles achavam até engraçado às vezes, embora nunca comentassem a presença dele, não explicitamente.

Ele ocupava sempre a mesma poltrona, que logo virara seu espaço cativo. Sorte dos donos da casa ter uma sala grande o suficiente, porque mesmo quando amigos e outras pessoas vinham visitá-los não faltava espaço. Nunca faltou. Mas era impossível não notar o novo anfitrião.

As coisas foram mudando aos poucos. A fofura de outrora começava a se dissipar; olheiras e rugas apareceram naturalmente. Ele estava ficando impaciente também. Há meses não dormia nem comia direito. “Nada mudou”, diziam, “tá tudo bem, do jeitinho de sempre”. A negação, autossabotagem, wishful thinking dos dois, como queira chamar, ficava mais e mais patética ao tentar ignorá-lo. Porque o animal, vira e mexe, passou a emitir barritos incômodos e desconcertantes.

Ele parecia velho, uma feição ranzinza sugira sob a pele flácida do seu rosto. Era estranho pensar que era ele aquele serzinho afável do começo de tudo. Será que todos envelheciam nesse mesmo ritmo impetuoso? Que esquisito, eles pensavam — e só, pois falar sobre ainda era algo fora de cogitação. Bons oradores, convenciam-se de que sabiam lidar com uma criatura daquele porte dentro de casa, mas não passava de um exercício retórico. Pura dissimulação. E os barritos acentuaram-se.

Não demorou muito tempo para ele causar incômodo com sua tromba. Principiou com movimentos suaves, e parecia movimentá-la apenas por instinto. Como de praxe, não ligaram muito para isso também. O consenso tácito de fingir demência perdurava. Não por muito mais tempo, eles pressentiam. Rumorejava entre os amigos que aquilo ia acabar dando merda uma hora. Mas ninguém ousava comentar com eles o tal bicho na sala. Isso eles que resolvam, os mais próximos diziam.

Quando parecia estar definhando, os dois rompiam, no limite do necessário, o cordão invisível de isolamento. Punham nos arredores da poltrona umas folhas de alface e agrião, sobras da janta, para ele não morrer de fome, coitado. Tudo, é claro, veladamente. Nada havia mudado, insistiam em dizer um pro outro.

É desnecessário dizer que não foi suficiente. A carência não era apenas alimentar, ele suplicava atenção. A tromba virara uma arma em favor disso: além dos barritos, ele agora a mexia de forma imprudente, passava o tubo pelos outros móveis da sala, arrojava água nas visitas, até arremessava objetos em direção aos dois, que nada faziam. E, por um bom tempo ainda, nada continuariam fazendo.

Ela porque era assim mesmo; não estava acostumada a tomar iniciativa das situações, não tinha muita atitude, deixava-se quase sempre à mercê da vontade alheia, e não pretendia mudar seu jeito tão radicalmente assim, portanto só esperava. Ele porque era canalha: sabia exatamente o que se passava dentro de casa; abriu as portas para o animal no primeiro dia, depois foi conivente à sua presença, e, sobretudo, era ele quem o alimentava de fato, portanto o único capaz de retirá-lo dali. Mas não o fazia. Nenhum dos dois.

Até que um dia, completamente embriagados em casa, olharam o elefante na sala e perceberam que do jeito que estava não dava mais para ficar. Depois de os convidados deixarem uma das muitas festas que os dois davam e de lavarem tudo o que precisava ser lavado, sentaram-se no tapete da sala e, consentidos, concordaram:

— Precisamos conversar sobre a nossa amizade colorida.


Renan Lima é 5/8 jornalista e um típico classe-média enjoada com pinta de artista. É tão previsível quanto os demais espécimes de sua fauna.

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