Pelo beco do pesadelo saindo da Matrix: o analista como vilão

por Gustavo Duarte
Foto de Luísa Machado para ilustrar a crítica "Pelo beco do pesadelo saindo da Matrix: o analista como vilão", de Gustavo Duarte.

Gustavo Duarte, nascido em São Paulo. Como poeta, uma passagem fracassada pelo largo São Francisco e o livro Lar de Orates, editora Giostri. Professor autônomo há oito anos, atuante em projetos de educação popular e redação pré-vestibular.


Em tempos de pandemia dos transtornos mentais, dois dos principais lançamentos recentes do cinema mundial — Matrix Ressurections (Lana Wachowski) e O Beco dos Pesadelos (Guillermo del Toro) — apresentam a figura do analista na condição de antagonista. Tendo em vista o avanço acrítico do discurso da “saúde mental”, o encontro dessas narrativas oferece ao público um caminho de improvável resistência. Nesse contexto, como compreender a vilanização de uma classe da qual, supostamente, espera-se a “cura” do sofrimento psíquico?

Antes de tudo, não cabe aqui distinguir psicologia, psicanálise e psiquiatria, uma vez que o imaginário popular concentra num mesmo arquétipo a posição de autoridade no âmbito da saúde mental. Desse modo, a alcunha genérica de “analista” serve com precisão, sem prejuízos epistemológicos, aos propósitos do discurso estético, a saber, a renovação da percepção, capaz de reorientar, sutil e radicalmente, a razão que nos conduz. 

Na serôdia sequência da trilogia, o queridinho do público Neil Patrick Harris interpreta um personagem sem nome, reconhecido apenas como “o analista”, cuja função é manter nosso herói revolucionário Neo (Keanu Reeves) integrado ao mundo de faz de conta da Matrix. A verdade adormecida que ainda atormenta seu sono e que sua consciência uma vez já conheceu é agora associada nas sessões de terapia às ficções típicas de uma mente fértil, criativa, e que devem ser canalizadas para uma atividade saudável e produtiva: o desenvolvimento de jogos virtuais. Já no remake taciturno de del Toro, a psiquiatra Lilith Ritter (Cate Blanchett) é equiparada ao mentalista charlatão Stan (Bradley Cooper), num jogo de poder e sedução, sujeitando histórias, anseios e angústias de seus analisandos. Assim, ao ocupar o lugar de vilão, o qual age sorrateiramente, movido por interesses próprios sob a máscara do altruísmo, em ambos os filmes a figura do analista é desmoralizada. 

O diagnóstico ofereceu à sociedade mais do que prescrições farmacêuticas; ofereceu sobretudo prescrições éticas e identitárias; em última análise, ofereceu explicações e caminhos para a existência humana. 

A partir dessa desmoralização, abre-se espaço para pensar criticamente os interesses que comandam a proliferação de campanhas de saúde mental para além da esfera sanitária, especialmente na vida privada e no ambiente de trabalho. Ao mesmo tempo, a onda negacionista ainda inunda os meios de comunicação em massa, e questionar os pressupostos teóricos e as escolhas metodológicas do conhecimento científico pode redundar em seu fortalecimento. Nesse sentido, são necessárias condições discursivas ainda distantes da realidade crítica de nosso debate público, o que não nos impede de prosseguirmos, contando não somente com a perspectiva da Arte, mas também da História.

O fator decisivo que impede a aceitação de um princípio crítico ao discurso dominante da psiquiatria está na construção histórica de suas categorias, especialmente a depressão, em oposição ao ideal de saúde mental, e no choque geracional que a acompanha. Nem sequer superamos completamente o senso comum de que “terapia é coisa de gente frágil, violentada ou maluca”, e já há quem problematize, mobilizando doutrinas inteiras, o entusiasmo dos que defendem que “todo mundo deveria fazer terapia”. A convivência caótica de visões primitivas, vanguardistas, técnicas, empíricas, desiludidas, utópicas, classistas, universais e aleatórias num ambiente de ultra conectividade e microprocessamento faz a mais simples observação parecer um cânone da mais alta complexidade. Ora, se quem primeiro efetivamente legitimou o sofrimento psíquico foi o discurso médico, a defesa pública deste é, por extensão, defesa de si mesmo. Nada mais natural. Não é razoável esperar daquele que, tendo sua existência negada, enfim encontrou uma forma de acolhimento, qualquer inclinação crítica a quem o acolheu. O diagnóstico ofereceu à sociedade mais do que prescrições farmacêuticas; ofereceu sobretudo prescrições éticas e identitárias; em última análise, ofereceu explicações e caminhos para a existência humana. 

Em certo ponto, não é difícil compreender que saúde mental significa mesmo levantar da cama para ir trabalhar, não sucumbir nem se revoltar, apenas continuar. Difícil mesmo é oferecer alternativas concretas, exequíveis e eficazes. Difícil mesmo é continuar sonhando. É preciso funcionar.

Sem recorrer às pomposas formulações, que nesses casos mais afastam do que aproximam, bastam simples perguntas e exemplos para colocar em xeque os interesses desse acolhimento. O que é saúde mental? Quais suas aptidões cognitivas? Atenção, ou foco, é uma faculdade da consciência, dentre muitas outras, como imaginação e criatividade, por que não existem, então, diagnósticos preocupados com o “déficit” dessas outras faculdades? Que tipo de atividade essas faculdades nos capacitam ou nos impedem de exercer? E o luto, por que será que após a morte de uma pessoa fundamental em sua vida, o DSM-5 (manual psiquiátrico de transtornos mentais) determina o período “normal” e “aceitável” de duas semanas para sofrer, depois disso é depressão clínica, ou seja, carimbo, remédio e de volta ao batente!?

Com um pouco mais de questionamento, algum estudo e reflexão, fica evidente que por trás do discurso da saúde mental existem instituições históricas e seus interesses dominantes. Em certo ponto, não é difícil compreender que saúde mental significa mesmo levantar da cama para ir trabalhar, não sucumbir nem se revoltar, apenas continuar. Difícil mesmo é oferecer alternativas concretas, exequíveis e eficazes. Difícil mesmo é continuar sonhando. É preciso funcionar. As urgências materiais falam mais alto que as mais belas utopias e as mais brilhantes e revolucionárias filosofias. 

Como também não tenho eu as respostas, fico com as conclusões provocativas dos analistas no desfecho dos filmes: “Vão em frente, refaçam o mundo, pintem o céu com arco-íris, mas é o seguinte, os cordeirinhos não vão a lugar algum. Eles gostam do meu mundo, eles não querem esse sentimentalismo. Eles não querem liberdade ou empoderamento. Eles querem ser controlados. Eles anseiam pelo conforto da certeza”. “Você não engana as pessoas, Stan, elas enganam elas mesmas”.


Foto de Luísa Machado.

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