Redes, intrigas e Olavo de Carvalho

por Luis Filipe Caivano
Ilustração de Gabriela Caivano para a crítica de cinema "Redes, intrigas e Olavo de Carvalho", de Luis Filipe Caivano.

Luis Filipe Caivano nasceu em São Paulo, é um pouco mais velho do que gostaria e escreve porque não sabe desenhar. Foi quarto colocado na categoria crônica e finalista na categoria poesia do Prêmio Off Flip de Literatura 2021. Escreve mensalmente para a Aboio.

Gabriela Caivano mora em São Paulo e estuda psicologia. Desenha desde pequena e na pandemia começou a se dedicar mais à ilustração para se distrair do fato de que mora no Brasil.


Assim como sete em cada dez adolescentes brasileiros, apesar de já não ser adolescente há uns 10 anos, costumo olhar a tela do celular pela manhã antes mesmo de me levantar da cama. Sei que este é um hábito que faz mal pros olhos, pra cabeça, pra saúde, enfim, sei que é um péssimo hábito, mas de vez em quando – bem raramente – ele faz bem pro coração. Hoje mesmo, por exemplo, quando, instantes depois de abrir os olhos, soube pela mensagem de um amigo [1] que Olavo de Carvalho havia morrido, provavelmente por complicações da covid. Eu poderia gastar linhas e mais linhas escrevendo sobre karma, ironia, cuspir pra cima, John Donne, Margaret Thatcher e sobre um sem-número de outras coisas que passaram e ainda passam pela minha cabeça enquanto processo a informação de que o mundo está livre do “guru” do bolsonarismo, mas não vou fazê-lo. Primeiramente porque os memes celebrando a ocasião são muito mais diretos e engraçados do que eu jamais poderia ser. Depois, porque este texto deveria ser sobre cinema e já está atrasado. Falemos, então, de cinema e deixemos Olavo descansando em paz.

Dias atrás assisti pela primeira vez “Rede de Intrigas”, filmaço dirigido por Sydney Lumet que conta a história de um canal de televisão americano fictício que luta contra baixos índices de audiência em meados da década de 70 (período em que a obra foi filmada). O filme como um todo, bem como seus componentes individuais (fotografia, atuação e sobretudo roteiro) me deixaram com uma impressão profunda e com a vontade de escrever algo sobre ele. A empreitada, em princípio, parecia relativamente simples porque o sensacionalismo midiático retratado no longa, que à época foi considerado como satírico e até farsesco, tornou-se dolorosamente real para nós. Em linhas gerais, a trama escrita por Paddy Chayefsky gira ao redor de Howard Beale, um âncora do canal que, ao receber a notícia de que será demitido, informa aos telespectadores que cometerá suicídio em rede nacional no dia seguinte, seu último dia de trabalho. Apesar da reação irada dos diretores do canal, a história de Beale na emissora lhe garante o direito de apresentar o noticiário pela última vez, até para poder se desculpar pelo ocorrido. E ele o faz de modo espetacular, falando como aquilo que ele de fato é: um homem sem nada a perder. A sociedade americana, seu antigo casamento e a própria emissora que o demitiu; pouca coisa escapa das injúrias do futuro ex-âncora.

A explosão raivosa de Beale é acompanhada atentamente pela jovem e ambiciosa Diana Christensen (Faye Dunaway em uma atuação brilhante e merecidamente oscarizada), uma programadora do canal que identifica Beale como o porta-voz da raiva e do ressentimento acumulado pelos americanos ao longo dos anos. Assim, Christensen convence os chefões da emissora de que seria uma boa ideia dar a Beale um espaço no horário nobre para esbravejar livremente. O programa, porém, só engata mesmo depois que Beale passa (literalmente) por um surto místico durante o qual uma voz lhe incumbe com a missão de espalhar a “verdade”. “Por que eu?”, pergunta um assustado Beale. “Porque você está na TV, bobinho”, responde a voz misteriosa. A partir daí o âncora convertido em apresentador de programa de auditório passa a pregar com o fervor de um “profeta irritado denunciado as hipocrisias do nosso tempo” (como lhe definem jocosamente seus colegas antes do surto) e a emissora ascende aos céus da liderança da audiência.

É este, em linhas tortas e gerais, o resumo da premissa de “Rede de Intrigas”. O problema é que o filme despertou tantas coisas em mim que eu simplesmente não soube por onde começar. Se, por um lado, Datena e seus milhares de sósias ainda seguem firmes e fortes programação adentro, por outro, falar mal de televisão parece, com o perdão da expressão, chutar cachorro morto. Acho que foi na terceira ou quarta série que escrevi uma redação meio fabulesca na qual eu falava da televisão como um monstro que saiu do controle e matou os livros. Dona Márcia, minha professora de português, gostou tanto do texto que ele acabou publicado numa coletânea da escola e eu me senti um menino muito inteligente. Era a mesma época em que eu fazia questão de falar que não gostava do Carnaval ou Big Brother porque isso fazia parte de um certo pacote de jovem intelectual metido à besta. Assim como Olavo de Carvalho (que parece rondar este texto como uma assombração).

Que conste em ata que hoje eu gosto do Carnaval e que, a despeito de me envergonhar de muita coisa do meu passado, ao menos eu nunca acreditei que Olavo tinha razão. Só que, quanto mais eu penso sobre os métodos patéticos do falecido “””intelectual”””, mais me dou conta de que isso provavelmente se deve mais à sorte do que às minhas qualidades intrínsecas. Só fui tomar conhecimento da existência do “””filósofo””” quando já tinha mais juízo do que acne, mas é triste pensar que lá pelos meus 14 anos, enquanto jovem gamer com pele sebosa, eu poderia muito bem ter caído no conto do astrólogo. Olavo, afinal, soava como alguém que não media as palavras, como se estivesse puto demais para se preocupar com as regras básicas de decência e civilidade. E isso é algo poderoso porque soa autêntico. Tanto que, ao comentar o aniversário de 40 anos de “Rede de Intrigas”, um crítico americano escreveu que “em algum momento, estar puto da vida se tornou a alternativa ‘autêntica’ a uma postura profissional, uma forma de empacotar ressentimento cultural e paranoia doentia em uma franqueza do tipo ‘sem tempo irmão’, mandar a real” [2]. Ele evidentemente falava de Beale, mas poderia muito bem estar falando de você-sabe-quem [3].

Por isso aqui, apesar do desvio para Olavo, voltamos ao filme. É que, assim que soube da sua morte, com o longa ainda fresco na minha cabeça, algumas peças soltas se encaixaram: Olavo nada mais era do que uma versão cínica de Howard Beale. Enquanto o protagonista realmente acreditava em tudo o que gritava (até porque ele raramente ia muito longe do senso comum), Olavo usava a atenção conquistada para vender cursos online e acumular influência. É que a figura do louco enquanto o único capaz de falar aquilo que as pessoas ditas funcionais temem admitir sempre exerceu muito fascínio no nosso imaginário. Basta lembrar, por exemplo, do bobo da corte de “Rei Lear”. Não é por outra razão que, já com seu programa de auditório a todo vapor, Beale é anunciado como “o profeta louco das ondas de rádio”.

Outra semelhança é que tanto o profeta quanto ao astrólogo seriam pouco mais do que uma dupla de lunáticos gritando contra nuvens não fosse pela presença de um outro ator fundamental: a mídia. Em nome da audiência, o canal de Beale não hesita em explorar a loucura de um homem claramente desequilibrado, da mesma forma que a imprensa brasileira sempre fez questão de dar espaço para os delírios de Olavo e de seus pupilos porque a polêmica vende. A diferença é que, no primeiro caso, a mídia não se torna vítima da sua própria falta de escrúpulos porque Beale acaba assassinado no próprio programa a mando dos executivos do canal quando seus índices começam a despencar.

Não obstante, a despeito de tudo o que os aproxima, Beale e Olavo se afastam num ponto fundamental: a responsabilidade. Enquanto o protagonista do filme não pode, moral e legalmente, ser culpado pelas consequências de seus atos porque passou por um surto psiquiátrico, Olavo sempre soube muito bem o que estava fazendo. Houve método sem loucura em cada decisão estratégica que vinha do astrólogo, e malícia e loucura, ao menos o tipo de loucura do qual estamos falando, são mutuamente excludentes. Ao menos era nisso no que eu acreditava. Não que eu cultue o igualmente péssimo hábito de beatificar ou inocentar uma pessoa depois que ela morra. Pra mim um cretino morto segue um cretino, só que morto. Mas, se é verdade que Olavo morreu de covid e que seu quadro se agravou porque ele de fato se recusou a tomar a vacina, talvez ele e Beale sejam ainda mais parecidos do que eu inicialmente imaginei. Imersos em delírios messiânicos, ambos morreram como viveram: perdidos nos próprios personagens e diante dos aplausos de uma audiência não menos delirante.


[1] Este amigo é o Arthur, que nunca lê meus textos (por mais que eu os mande para ele) e, portanto, não saberá que foi citado em um deles.

[2] https://www.indiewire.com/2016/12/network-anniversary-news-media-1201750526/

[3] Não é Voldemort, é Olavo mesmo.


Ilustração de Gabriela Caivano.

Uma resposta

  1. Minha tese de mestrado teve justamente “Rede de Intrigas” e outros dois filmes jornalísticos como objeto de estudo. Obra assustadoramente atual! Só não havia me dado conta de como o arquétipo de Beale se assemelha ao falecido sofista da Virgínia. Bela reflexão.

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