Para todos os amores do mundo

Para todos os amores do mundo

por Matheus Hotz

24 de setembro de 2024

para todos os amores do mundo
um dragão
suas garras buscando moedas
nos poços do destino
a fenda abre:
para todos os amores do mundo
uma loucura

amar é rachar
em dois

e para todos os dragões do mundo
nenhuma cura

eu e você descobrimos isso tarde demais
e a verdade que há nas palavras é muito
densa para aqueles
que buscam no outro
um remédio

a verdade que há nas palavras
é muito frágil para aqueles
que buscam no outro
um veneno

amar não é rachar em dois
amar é somente perceber
a rachadura

o sangue de górgona que bebeu Perseu

criamos cobras e pisamos
em suas cabeças porque
criamos cobras e elas nos picam
e pisamos em suas cabeças

criamos cobras em cativeiro
e seu corpo é rabo e de pé
e sua cabeça na altura de nossos olhos
e as mãos apertam suas cabeças

enquanto seu sangue e veneno não significam nada
Anelise Freitas

tenho vergonha da mancha
entre meu indicador
e meu dedo médio
a mancha dos dedos que afundam
no sexo
da serpente que me pariu
tenho vergonha do sexo
e os venenos que bebo só não me matam
porque sei
que sou artesão
da minha própria boca inchada
da glande errante que jorrava
palavras cortaram a cabeça de medusa
palavras cortaram multilaram seu sexo
os homens, seus cavalos sobre o mar
invadem seu reino
não deixam pedra sobre pedra

eu estava lá

tenho vergonha da mandíbula deslocada
longa alta que me engole
do beijo ofídico que comprei noturno
e que na noite seguinte
decepei solar
os homens, seus cavalos sobre
o corpo da górgona pisoteiam
o homem é bom é uma mitologia de crimes
contra a tirania do desejo
o homem é bom seus cavalos
estão a pisotear medusa
carrego comigo o escudo de atena

eu estava lá

por debaixo do bastião erguido
no sangue verde da medusa
os homens brindam ao veneno
brindam a vitória
do homem bom sobre o desejo
por debaixo dos olhos secos
do peito exposto
das espadas tão polidas
a serpente engole a si mesma
troca de pele
canta uma canção tão bonita
e com seus olhos abertos
reflete a sua imagem
perseu covarde

eu estava lá

câncer

caranguejo que só sabe andar para
trás deixar a barriga exposta é o seu
pavor e o seu desejo

quer que te devorem
e que te salvem
de si mesmo

Matheus Hotz é poeta, professor e oraculista. É autor de O Dia do Búfalo (Macondo, 2018) e terá seu segundo livro lançado em breve. É hipertenso, ansioso e gasta dinheiro demais com videogames, mas garante que está tentando o seu melhor dentro das atuais circunstâncias.