antes que o fruto caia

por Andreas Chamorro
Capa de antes que o fruto caia, romance de Andreas Chamorro, por Leopoldo Cavalcante.

Andreas Chamorro nasceu em 1994, publicou as coletâneas de contos Divindades Solitárias (Editora Kotter, 2021) e A orgia perpétua ou o relatório de Pimenta (Editora Pátua, 2022). Vive em São Paulo. antes que o fruto caia (Aboio, 2024) é seu primeiro romance.


Naquela mesma noite eu fiz um teste de farmácia e a segunda tira nem fez menção de se azular. Dormi achando que o enjoo e as dores de cabeça tinham sido um efeito placebo do avesso mas sonhei com aborto até encharcar o lençol e os cabelos da nuca.

Acordei e fui direto fazer um Beta HCG. Três dias depois fui a um ginecologista e somente quando ele referiu toda a avaliação de sintomas em paralelo com o exame e mais alguma coisa que não lembro que admiti a mim mesma: você está grávida.

Cheguei em casa naquela tarde brava feito um animal, Clarice nem ao menos tentou se aproximar de mim, quedou-se quieta e desarmada em cima da cama enquanto eu fumava um cigarro atrás do outro na sala.

Tive de refazer todo o percurso. Fiz pesquisas no Google, entrei em grupos de gestantes e vi vídeos no YouTube. Refiz tudo, repercorri o que me aconteceu.

E começou antes de Ubatuba. Deve ter começado até antes de me convidarem. Talvez eu, inconscientemente, tenha aceitado ir porque já estava iniciada a mudança brusca. A ruína estava prestes a ter seu primeiro corisco.

Combinamos a viagem alguns dias antes de sairmos de férias, paguei a passagem com um absorvente interno intumescido enfiado na vulva, e quando chegou a data algum óvulo meu estaria escorregadio na busca de ser implantado, como espera o inconsciente milenar do corpo gerador todos os meses. Quando transei com Gabriel, um pouco antes de irmos embora, ele deve ter sido implantado com sucesso. Era só a realização de duas fantasias, a minha em tê-lo e a dele em me ter, mas para o corpo isso também significava uma guerra, cuja vitória nós é que demos o pretexto. Centenas de milhões de espermatozoides nadando pela mucosa originada da ovulação, até que um consegue se amaldiçoar. Imagino os outros, tristes, sabendo que vão morrer, enquanto o vitorioso mal sabe o que o espera.

Uma semana. Uma semana até que o óvulo implantado chegasse ao meu endométrio engrossado pela progesterona. Pronto, fiat homo. E a partir desse momento — quando será que de fato ocorrera esse momento. Será que estava deitada, dormindo, cantando, divagando, no mercado, limpando a caixinha de areia de Clarice. Terrível não saber — a cada doze horas as células se duplicam, mandando a mensagem a meu corpo de que um outro já se faz.

O cérebro é a primeira mãe ou pai de um embrião.

Durante as últimas semanas, sem eu ter um rastro de noção, o outro foi de 0.15 mm a 1 mm dentro do meu âmago, me trazendo enjoos, dores de cabeça, e uma proeminência quase dolorida nos mamilos. Um outro que, ao longo dos dias, desenvolveria olhos negros como sementes de mamão, um rascunho de cérebro e o esboço de um túnel neural. 

Na última quarta-feira, quando tive a primeira e opaca suspeita, quando dei aquela aula péssima, o ser já era um ser para o fundo do meu corpo e minha batalha então seria entre a minha alma e a dele.

Hoje tenho a completa ciência de meu estado. Sinto os cheiros da gata, da casa, dos vizinhos e da cidade a quilômetros. Paradoxalmente, venho comendo muito e me sentindo exausta ao mesmo tempo. Mas é a primeira vez que decido encarar isso. Essa semana o outro chegará a 2 mm. Um milhão de células se reproduzindo, uma festa divina dentro de mim. Já está mais do que na hora de encarar. Já não serei a mesma, afinal.

Me pus na posição dos meus alunos e comecei a interrogar o princípio, a base. O que, então, é isso de gravidez. E antes de encarar a investigação propriamente dita eu notei que teria que me despir da casca cívica o máximo que conseguisse. A gravidez e a maternidade são instituições tão estigmatizadas que, para conseguir interrogar no avesso do além da coisa, eu teria que me ausentar de mim mesma. E, assim, me ver como um católico medieval diante de uma polução noturna. E por que interrogar. Talvez para obter um lastro de resposta que me ajude a decidir o que farei com isso. Mais: o que farei de mim a partir disso. Não sou mais a mesma. Era uma Maria antes, estou sendo outra Maria e serei outra depois da conclusão. Não há escapatória. O único vislumbre certeiro que tenho é que eu era uma mulher convicta da vontade de não ter filhos. É esse meu ponto de partida.


Você acabou de ler um trecho de antes que o fruto caia (Editora Aboio, 2024), romance de estreia de Andreas Chamorro. Gostou do que leu? Adquira-o clicando aqui.

Mais sobre a obra

Marcada pelo signo da madona contra o qual se rebelou quando ainda era criança, Maria sempre teve a convicção de que não seria mãe. No entanto, uma viagem com os colegas de trabalho e o breve envolvimento com um deles num areal qualquer de Ubatuba põem suas certezas em xeque.

Ela – professora de filosofia, sisuda e racional – sabe muito bem qual decisão deveria tomar, mas as dúvidas se multiplicam junto às células em seu ventre; o ente vira embrião, depois feto. A perspectiva da maternidade não planejada nem desejada empurra a personagem para dentro de si mesma na busca por respostas junto ao seu ser-mulher e seu ser-filha.

Transitando na vastidão entre sua liberdade de escolha e instintos ancestrais, Maria é uma protagonista complexa que instiga simpatia e aversão na mesma medida, um retrato fiel das dores humanas inevitáveis mesmo para quem tem nome de santa.

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