Café com calma

por Ana Elisa Granziera
Fotografia: Estação das Laranjeiras – Juan Gutierrez (Acervo Instituto Moreira Salles).

Ana Elisa Granziera é escritora, ilustradora e aquarelista paulistana, nascida em 1979, e residente no Canadá desde 2017. Autora dos livros Brutta Figura (Chiado Books, 2021), Manual das Decepções de Uma Vida Comum (Mocho Edições, 2022), e Pandora Não Dormia – poemas de noites insones (Edição da autora, 2023), escreve crônicas na newsletter Boletos & Borboletas, ilustra capas e livros infantis, e expõe aquarelas em cafés de Ottawa, onde vive com o marido e os filhos, personagens dos seus cartuns desde 2011.


Acordo sem fome, e deixo para beliscar um quitute depois de acompanhar as crianças à escola. Acompanhar é o termo certo, que ninguém mais precisa que leve. Os dois vão. Eu acompanho. Ando as ruas geladas e atravesso o bosque olhando onde piso, que a neve é fofa, é dura, é gelo, é lisa, é buraco, e cada dia exige um equilíbrio e uma atenção. E quando volto, abraço, beijo, bom-dia, se cuida, até mais, volto olhando para cima, já sabendo o caminho, grasnando de volta para os corvos feito velha louca que fala com bicho, de um jeito que faria meus filhos morrerem de vergonha, mas eu não ligo.

O segundo café do dia é mais gostoso, porque tem silêncio. 

Dá tempo de pensar vontade e não só obedecer a essa fome de relógio. 

Tem iogurte, mas faz frio lá fora, e não me vai ter frio dentro também. Tem bolo, mas bolo parece três da tarde. Há pão. Que pão? Baguete. Importa? Sempre. Que pão fatiado pede torradeira, para a faca da manteiga não arranhar miolos, e a superfície dourada e quente derreter a gordura e chupá-la toda, com a sede de um copo d’água no verão esturricante. Baguete é um barquinho que carrega um tapete de manteiga doce, sem tocar calor nenhum, para a boca ter a casca crocante, o miolo macio e a gordura que dissolve, três distintas texturas que se envolvem na língua de repente. Sem sal. O sal, melhor se sal chique, destes de floquinhos que derretem devagar, vai bem salpicado na manteiga quente. Melhor se for quente de frigideira, de quando o pão com manteiga vai de barriga na panela quente, até sussurrar borbulhas e se submeter ao peso da palma da mão que o pressiona contra a chapa. Aí vai de comer as beiradas, douradas, perfumadas do leite caramelizado, craquelando sob os dentes e revelando aquele miolo esponja de manteiga quente. 

Baguete permite geleia. Um pouco. Da boa. Véu translúcido de doçura brilhante para enfeitar a manteiga que já basta. Se basta, então pra que mais? Puro luxo. O toque de excesso. Travesseiro extra, cobertor macio. Riso preguiçoso sob o lençol. 

Pão doce pede requeijão. 

Pão de massa azeda, desses que se corta em fatia fina e minha filha reclama que tem mais buraco que pão, tem qualquer coisa de metido à besta que gosta de complicação. Queijo de cabra. Assim, equilibrado sobre as beiradas dos furos feito as cabras no topo das montanhas, olhando o precipício do prato ao saltar da mesa à boca. E mel. Um fio, deitado devagar, escorrendo da ponta da faca e desenhando rios no queijo branco de neve sobre o terreno inóspito do pão. Doce, azedo, untuoso, cremoso, salgado, crocante: complexidade de uma civilização que resiste firme à mordida, até se render ao rasgar selvagem que arrebenta e parte. 

Ovo é um carinho extra, um tempo a mais. 

Cereal no leite gelado é pra quando a gente não é sério.

Com mingau não se brinca não. Mingau de aveia quente é combustível de missão, dia duro pela frente, corrida longa em mente. Juntos chegaremos lá, para o alto e avante, to infinity and beyond. O mingau está lá nos tempos difíceis, ombro amigo, uma mão na manhã comprida. 

Tapioca é saudade. 

Ouço meu dia no apetite do café com calma, na mastigação atenta aos gostos e o suspiro satisfeito quando levanto a xícara quente do pires. Olhar distante. Ninguém fala da importância do olhar distante. Mas que abraço! Que abraço é o café que tem tempo de olhar longe e perder o foco num pensamento sem forma. Ser desperto das imagens além da borda da xícara quando a ponta do nariz toca a espuma do leite. Limpa com o guardanapo. Tem sorriso, é lógico, que quem é que não sorri quando suja o nariz de leite? Sorriso que ninguém vê tem raiz mais funda. 

O tempo é seu quando se aperta a ponta dos dedos nas migalhas do prato, coleção de saudade do que acabou de ser, um não querer largar o prazer que se esvai. Dedo na boca. Tem lamber geleia do dedo e tem lamber geleia do dedo. E você sabe como escolhe seu dia dependendo de como a geleia é lambida. 

Amor é o restinho de café com leite no fundo da xícara. Se amar é se dar tempo de buscar colherinha pra raspar aquela espuma doce que te espera. Usar o dedo é uma lambança boa. Se lambuza de vida, minha filha, que o dia promete. 

Acabou-se o que era doce, dizia a rima. Foi bom pra você? Foi ótimo. Que bom. Agora bota a louça na pia, guarda a manteiga na geladeira e não esquece de fechar direito o saco do pão. Chega de enrolação e bora trabalhar, criança.


Fotografia: Estação das Laranjeiras – Juan Gutierrez (Acervo Instituto Moreira Salles).

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