Caminhávamos pela beira

por Lolita Campani Beretta
Ilustração: Coelho – Floris Verster. Arte da capa de "Caminhávamos pela beira".

Lolita Campani Beretta nasceu em 1985 em Porto Alegre e vive atualmente em Ubatuba, no litoral paulista. Seu primeiro livro, dispersar todo sonho, saiu pela editora Quelônio em 2022. Além de escrever, desenha o mar e as montanhas, e também tirinhas da personagem MelancolitaCaminhávamos pela beira é seu segundo livro.


UM SONHO

Estamos, meu irmão e eu, cada um em uma pequena canoa. Há um silêncio profundo, há um ritmo lento e perfeito. Montanhas, o mar. E, bem perto, vemos, são barbatanas, são dois tubarões. Nesse mesmo silêncio, nos olhamos. Não há alarde, há sobretudo o olhar, a clareza compartilhada da espera. Ali ficamos, até acordar.


Trecho de OS PÉS

algumas pessoas divergem sobre a possibilidade de colocar os pés sobre mesas.

outras, sobre a manutenção das meias nos pés, independente da temperatura.

outras, ainda, sobre o contato entre pés e línguas.


35

Abro o freezer, como se pudesse ter esquecido ali algo que não lembro de ter comprado. O que acontece é que mais ou menos perto dos cubos de gelo, que seguem sistematicamente sem gelo, ali, atrás dos restos de um molho pré-pronto que nem mesmo gostei, agora, o que acontece ali é na verdade isso aqui: você está pensando em congelar óvulos?


post-its

knausgård começou assim:
para o coração, a vida é simples:
ele bate enquanto puder.
e então para.

harry sente que é uma pessoa melhor por pensar na morte.
sally acha graça. she’s too busy being happy.

sobre envelhecer, michael caine responde:
compared to the alternative, it’s fantastic.

paterson pergunta:
would you rather be a fish?


RUDIMENTAR

Às vezes me pego invadida pela lembrança de um antigo colega dos tempos de colégio. Ele tinha a mania de mostrar a bunda a estranhos. Toda vez que bebia, na volta das festas, abaixava suas calças ou bermuda e então expunha o traseiro. As meninas diziam coisas como que nojo, os meninos davam risada, alguns sugeriam vamos acompanhá-lo ou vamos levar suas calças embora, porém nunca passavam de ameaças, e o que acontecia é que acalmado o primeiro alvoroço ficávamos todos apenas em silêncio, aguardando que o momento se encerrasse. O grotesco não era tanto seu traseiro exposto, e sim o que havia de desolador em seu gesto. Era um rapaz tímido, o mais tímido da turma inteira, e, toda vez que se punha fora de si, não dizia os habituais palavrões, não agarrava indevidamente, como muitos, as meninas que não o queriam, apenas virava-se e mostrava seu traseiro. Não o fazia diretamente para nós, mas a pessoas aleatórias que cruzavam nosso caminho, em ruas vazias, em carros velozes. E assim presenciávamos, ainda que de relance, algo como a face nua de toda alma, solitária. Talvez por isso nosso silêncio, talvez por isso um quase respeito: protegia-nos, de algum modo, daquela gigante revelação.


Você acabou de ler alguns trechos de Caminhávamos pela beira, de Lolita Campani Beretta.

Caminhávamos pela beira é uma festa introspectiva em que Lolita Campani Beretta explora em prosa e verso diferentes possibilidades contidas na palavra “beira”.


Arte: Coelho – Floris Verster.

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