Laura Redfern Navarro é poeta e quase-formada em jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero. Toca a plataforma literária independente @matryoshkabooks, focada em literatura brasileira contemporânea. Pesquisa o testemunho enquanto subversão do trauma, do feminino e do corpo em “O Martelo”, de Adelaide Ivánova. Publicou, em 2020, o livro Matryoshka (Desconcertos) e colabora com a equipe de poetas da FaziaPoesia desde 2021.
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LÁGRIMA
I
estou há quase três dias sem dormir
os objetos enfiados ⠀⠀⠀⠀no corpo ⠀⠀não faz mais diferença⠀⠀⠀ou prazer
tê-los aqui como se⠀⠀⠀⠀[[você não vai me rejeitar!!]]⠀⠀⠀⠀amanhã
⠀⠀⠀eu chorei por acaso.
II
[realizei no sonho que tive duas semanas atrás a audácia de subir teus ombros você⠀⠀⠀⠀tão alto e
⠀eu jorrando de tudo que era possível vai vai me levanta deixa eu sentir um pouco de você]
⠀⠀eu chorei por incongruência.
III
parece que todos os nossos caminhos se encontram de alguma forma mas não dá a⠀⠀liga certa eu não sei explicar isso⠀⠀não sei explicar porque comecei a te amar
duas semanas depois
as gotas pegajosas ali
IV
o desejo não é ter o seu sêmen passeando pelo meu corpo retendo o aborto do filho que não é possível
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀é outra coisa:
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀é sobre chorar
V
os olhos brilhando ao te encontrar
azuis⠀⠀⠀⠀⠀na esquina do bar⠀⠀⠀⠀⠀ a manhã seguinte
da noite que não dormi
⠀⠀⠀⠀[você não estava]:
VI
encostar o rosto no seu ombro
assim você decora minhas sardas⠀⠀a alça do sutiã⠀⠀a água com gás porque não bebo
olhar um nos olhos do outro e dizer
não somos⠀⠀ a mesma⠀⠀coisa;
VII
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀eu chorei por todo o meu corpo
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀que também chorou
ficamos em silêncio
e depois eu não falei mais nada
na verdade
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀[eu nunca falei nada]
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀foi por isso⠀⠀que chorei tanto.
SEM TÍTULO
I
não sei se tive /tempo/
para⠀⠀⠀⠀⠀te amar;
ou se apenas te contemplei
⠀⠀⠀⠀⠀na sua [grandeza]
com alguma inveja;
⠀⠀⠀⠀você é a própria Estrela
⠀⠀⠀⠀na sua juventude, na sua
⠀⠀⠀⠀bebedeira, na sua [im
⠀⠀⠀⠀ possibilidade]
II
o seu excesso que
/sem me perceber/ encosta
na menina que fui
e tentei [engolir]
⠀⠀⠀⠀do meu corpo, meu [amor?]
⠀⠀⠀⠀ofereci o medo o silêncio
⠀⠀⠀⠀e a inocência
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀do meu afeto
III
você feito um imã
como se me puxasse
para o seu lado;
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀decidi que iria então:
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀colar a minha testa suada
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀no seu peito
foi a única vez que vi a [concretude]
desse meu desejo naquele /vazio/
foi assim⠀⠀ que eu me quebrei
o rosto e o tórax em milhares de
p e d a c i n h o s
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀você não⠀⠀⠀⠀⠀[ ]
IV
⠀⠀ ⠀⠀ ⠀⠀ ⠀sonhei com vingança
⠀⠀ ⠀⠀ ⠀⠀ ⠀ontem à noite /eu confesso/
⠀⠀ ⠀⠀ ⠀⠀ ⠀⠀⠀ ⠀⠀ com alguma Culpa;
vomitei como criança pequena e irada
a própria Medusa ⠀⠀ a minha verdade
se concretizando como espuma nos
cantos da boca:
⠀⠀ ⠀⠀ ⠀“pois eu sou vazia
⠀⠀ ⠀⠀ ⠀⠀e você não me protege!”
e você sempre
tão grande virando-se
com os olhos⠀⠀ ⠀⠀ /sem querer ⠀⠀ ⠀⠀eu vi/
⠀⠀ ⠀⠀ ⠀⠀ ⠀o fundo da sua beleza impressionante
⠀⠀ ⠀⠀ ⠀⠀ ⠀completamente desmontada como ela é
⠀⠀ ⠀⠀ ⠀⠀ ⠀na realidade⠀⠀ ⠀⠀ ⠀ [um céu de poeira];
V
você me encostou⠀⠀a mão no ombro;
⠀⠀eu te agarrei⠀⠀⠀⠀ você me agarrou⠀⠀⠀⠀nós dois⠀⠀⠀⠀ agarrados
como nunca
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀me enterrei sob você
deixei o seu corpo
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀conhecer a minha Culpa
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀de ter te desmascarado
vislumbrei, então,⠀⠀ essa palavra:
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀[vulnerabilidade]
VI
acordei como /sempre/
procurando preencher⠀⠀⠀⠀⠀ ⠀ fugir⠀⠀⠀⠀⠀ ⠀ salvar
⠀⠀⠀⠀⠀⠀ o Mistério
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ me [invadindo]
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ o dia inteiro;
enquanto me prepara
para se derramar
⠀⠀⠀a presença do corpo
impregnando por essa outra
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ [existência] do corpo
Foto de Maria Cecília Chaves Machado.
1 Comment
Laura é incrível.