Ele não é o Papai Noel: “A Vida de Brian” e um delírio natalino em Ribeirão Preto

por Luis Filipe Caivano
Ilustração de Gabriela Caivano para crítica de Luis Filipe Caivano sobre "A Vida de Brian"

Luis Filipe Caivano nasceu em São Paulo, é um pouco mais velho do que gostaria e escreve porque não sabe desenhar. Foi quarto colocado na categoria crônica e finalista na categoria poesia do Prêmio Off Flip de Literatura 2021. Escreve mensalmente para a Aboio.

Gabriela Caivano mora em São Paulo e estuda psicologia. Desenha desde pequena e na pandemia começou a se dedicar mais à ilustração para se distrair do fato de que mora no Brasil.


Nos últimos dias do mês de novembro, a Noruega se tornou manchete no mundo todo em razão de uma malfadada festa de Natal na qual diversos participantes foram infectados pela mais nova (até a redação deste texto) variante da Covid-19. Enquanto lutava para conter o avanço da Ômicron em seu território, um insidioso e ainda mais devastador ataque contra o país nórdico era gestado no interior paulista. É que no dia 30 do mesmo mês, a câmara municipal de Ribeirão Preto votou – e aprovou – a moção de repúdio proposta pelo vereador André Rodini (do partido Novo) contra os correios da Noruega. A razão? Uma propaganda veiculada pela instituição na qual, em homenagem ao aniversário de 50 anos da data em que a homossexualidade deixou de ser criminalizada no país, Papai Noel dá um beijo (sem língua) em outro homem. 

A argumentação utilizada pelo vereador para justificar a moção de repúdio (que também incluiu o portal de notícias G1 e a repórter que primeiro escreveu sobre a propaganda) é puro suco de liberalismo à brasileira:

“Eles poderiam ter utilizado Odin, Thor, qualquer outro mito da religião nórdica. O Papai Noel não é mais uma representação cristã, ele é uma representação universal. Na cabeça das crianças, ele representa o lúdico. […] O Papai Noel é uma das poucas lendas universais que prega a meritocracia. Se você respeitar as pessoas, receberá um mimo no final do ano”.

A cena toma contornos ainda mais surreais quando a vereadora Duda Hidalgo, do PT, inicia um debate sobre a sexualidade do bom velhinho para provar que o incômodo de Rodini tem origem não numa suposta sexualização do personagem, mas sim na homofobia do vereador do partido Novo. Apesar de ela estar repleta de razão, é difícil reconhecer um bom argumento quando uma discussão deste teor acontece durante a sessão de uma casa legislativa, sobretudo a de um município que fica a 10.384 quilômetros da Noruega.

Minha ideia inicial para este mês era escrever sobre meu clássico natalino favorito, “Duro de Matar”, mas o caso de Ribeirão Preto foi tão bizarro que me vi forçado a escolher um filme que me ajudasse a elaborar o episódio. Teria que ser um filme que falasse sobre Natal, sobre a estupidez humana e sobre fanatismo religioso. Teria que ser “A Vida de Brian”.

Mas o que um filme inglês de 1979 tem a ver com o Brasil de 2021? Muita coisa, na medida em que o longa, mais do que uma sátira religiosa propriamente dita, é uma crítica às pessoas que não pensam por conta própria e, assim, assimilam acriticamente arcabouços ideológicos e simbólicos que soariam manifestamente ridículos mediante uma breve reflexão. Kit gay, mamadeira de piroca (sic), Foro de São Paulo, vacina com chip, sapatênis… acho que a conexão está mais do que evidente.

É claro, porém, que esta nuance passou – e passa – batida pelos críticos que, apesar de se dizerem porta-vozes dos ensinamentos de Cristo, optam pelo caminho da inquisição espanhola e condenam algo sem ao menos saber do que se trata e sem sequer compreender plenamente os argumentos que fundamentam a condenação defendida. Vide o vereador ribeirão-pretense do partido Novo, que, de forma muito brasileira, mistura liberalismo, ignorância e homofobia para formular seu argumento delirante. 

Um espectador que assista ao filme sem pedras nas mãos, inclusive, perceberá que a trupe do Monty Python não poupa o outro lado do espectro político. O grupo anti-romano ao qual Brian se junta, o People’s Front of Judea, perde mais tempo debatendo filigranas do que tomando ações concretas e tem mais ódio de outros grupos similares (especialmente o famigerado Judean People’s Front) do que dos próprios romanos, uma clara paródia do sectarismo comumente associado às esquerdas. Aliás, é justamente o conflito fratricida entre dois destes grupos que coloca Brian no caminho que o fará ser confundido com o Messias e, ao final do filme, crucificado. 

Tendo em vista o atual estado das coisas, é impressionante lembrar que “A Vida de Brian” foi lançada há mais de quatro décadas. É verdade que o filme quase não existiu porque, após ler o roteiro às vésperas do início das gravações, o presidente da produtora que iria financiá-lo cancelou o projeto supostamente com base na justificativa de que ele não iria “fazer piada com a porra de Jesus Cristo” [1]. E também é fato que os Pythons escreveram seus testamentos antes de irem a Nova Iorque para a estreia do filme porque eles estavam com receio do binômio “fanáticos religiosos + fácil acesso a armas de fogo”. Apesar de protestos e de ter sido proibido em alguns locais (entre eles – vejam só – a Noruega [2]), não se tem notícias de que “A Vida de Brian” tenha provocado atos de violência. 

Enquanto isso, às vésperas do Natal de 2019, 40 anos após a estreia do segundo longa-metragem do Monty Python, a sede do Porta dos Fundos no Rio de Janeiro foi alvo de um atentado terrorista de cunho religioso. Um grupo arremessou coquetéis molotov contra a fachada da produtora em repúdio a “A Primeira Tentação de Cristo”, média-metragem lançado pelo Porta dos Fundos pouco antes e que retratou Jesus como um homossexual. Ao ser preso na Rússia, para onde fugiu após o ocorrido, um dos autores do crime se justificou com o que poderia muito bem ser uma frase tirada de um sketch do Porta dos Fundos:

“Nunca antes na história da humanidade se teve notícia de uma obra artística, cinema, teatro ou literatura, em que Nosso Senhor tenha sido retratado como bicha e amante homossexual do diabo! Se o preço para dar combate a isso for o exílio político e a prisão na Sibéria, essa será uma cruz que eu carregarei com a fé e coragem. E até alegria!”

Os cristãos americanos (e os brasileiros) são tão desconfortáveis com a própria sexualidade que nada mais – guerras, destruição do planeta, miséria – parece digno de importância para eles. Para Cleese, isso acontece porque essas pessoas têm péssima saúde mental e são incapazes de interpretar a Bíblia.

Assim como aconteceu com “A Vida de Brian”, os detratores deste e dos demais especiais de Natal do Porta dos Fundos ou não os assistiram ou são incapazes de ir além da camada mais superficial da piada e compreender que, no cerne da obra, os valores cristãos permanecem incólumes – mais até, são reforçados. Tanto na obra do Monty Python quanto nas do Porta dos Fundos, Jesus segue o filho de Deus e seus ensinamentos básicos – amor ao próximo, caridade, humildade – permanecem os mesmos. A reação desmedida de grande parte da sociedade brasileira apenas revela o entendimento superficial que se tem da Bíblia por aqui.  

Não por coincidência, ao comentar sobre a recepção enfurecida de “A Vida de Brian” nos EUA, John Cleese, um dos seis Pythons, faz um diagnóstico que também se aplica ao Brasil atual. De acordo com ele, o cristianismo nos Estados Unidos é fundamentalmente uma religião ligada ao sexo. Os cristãos americanos (e os brasileiros) são tão desconfortáveis com a própria sexualidade que nada mais – guerras, destruição do planeta, miséria – parece digno de importância para eles. Para Cleese, isso acontece porque essas pessoas têm péssima saúde mental e são incapazes de interpretar a Bíblia.

Corta para o vereador do Novo, que acredita piamente que uma propaganda retratando Papai Noel trocando afetos com outro homem de algum modo vilipendia sua fé cristã. Aliás, a confusão desta figura, uma das representações máximas do capitalismo, com o cristianismo não deixa de constituir um tremendo ato falho. Não é de hoje que parte desta direita “liberal na economia e conservadora nos costumes” trata cada aspecto do nosso modelo econômico como um dogma. Se dele inevitavelmente resultam miséria e fome, bem, não é dado aos pobres mortais compreender os desígnios divinos. 

Chega a ser quase engraçado o fato de que um dos nomes do presidente seja justamente Messias e que isso seja usado como prova de que ele foi escolhido por Deus para livrar o país do comunismo ou algo que o valha. Assim como Brian busca incessantemente afastar seus fiéis, gritando repetidas vezes que ele não é o Salvador, às vezes se tem a impressão de que as declarações progressivamente mais absurdas do presidente têm uma função parecida. O problema é que, tanto no filme de comédia quanto na realidade assustadora, isso parece apenas inflamar ainda mais os seguidores de um e do outro falso Messias em suas crenças estapafúrdias.

[1]: Caso exista alguma discussão acerca de qual foi o melhor Beatle, basta lembrar que, quando a primeira produtora deu para trás, foi George Harrison quem pessoalmente investiu os quatro milhões de dólares necessários para que o filme acontecesse. Ele até faz uma brevíssima aparição em cena como um figurante. Baita cara.

[2]: Em razão disso, muitos noruegueses foram à Suécia para assistir ao filme, onde os cinemas, como estratégia de divulgação, anunciavam que a obra era ”tão engraçada que foi proibida na Noruega”.


Ilustração de Gabriela Caivano.

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