Estar só: com cama

por Paulo Tassa
Fotografia: O 14 Bis, de Alberto Santos Dumont, durante vôo no Campo de Bagatelle – Autoria não identificada (Acervo Instituto Moreira Salles).

Paulo Tassa nasceu em 1985, na cidade de Manhuaçu (Minas Gerais). É doutor e mestre em Literatura pela Universidade de Coimbra. Licenciou-se em Letras pela PUC Minas (2010). Em 2018, publicou caída (2018, Letramento) e em 2021 lançou o homem à espera de si mesmo (poesia, Mosaico). Escreve esporadicamente para o Le Monde Diplomatique (Brasil) e tem poemas, crônicas e contos esparsos em revistas nacionais e internacionais.


I

Consigo ficar parado enquanto me movo pelo centro de tudo. Posso não falar, falando – ausente na presença de quem me escute. Posso: o silêncio é uma forma de retorno: a linguagem segue derramada sobre cada coisa, capaz de estar quieta sem morrer, sem a minha ajuda, feito poeira existindo. Tudo fala quando se cala, até a poeira aprendeu isso – eu descobri muito depois. Outro dia: numa festa de aniversário, não consegui dizer cadeira e mesmo assim me sentei – prova de que não só as palavras afirmam (mas todas impedem). Sim: me sentei na ideia primeiro, depois na palavra que calei, depois na madeira e no estofado edificando, juntos, outro nome para descanso. Não costumo ir a aniversários sem cadeiras. É a idade, que ainda não tenho.

Estar em silêncio funciona quando não consigo escapar do núcleo da vida, ou seja, sempre. Respiro como um detento sem relógio. Falando nisso: a pergunta que horas são? me faz vomitar, me come cru. Penso nas multidões do mundo, por terra, água e ar, em todos os fusos horários, tentando entender que horas são – nasceram atrasadas para essa resposta e quem precisa dá-la sou eu?

Não sou antirresposta. É que não preciso responder. Ninguém precisa. Se fecho os olhos, contemplo os nomes das coisas todas boiando no ar. Feche os olhos você também: sem ver, o que sobra são palavras flutuando no breu, sem destino nem acaso: a escuridão derrota as palavras, sobretudo em mistério, cor e deriva! Domingo à tarde eu gosto de ler: me aninho na poltrona da sala, fecho os olhos e vou bebendo as narrativas e versos que se instalam à minha frente: o nada humilhando a miséria das palavras. Ontem queimei o meu último dicionário.

Quanto mais palavras, mais deriva. Prefiro escrever isto aqui porque, se digo, as pessoas me respondem com mais e mais palavras, o mar se expande e eu me afogo. Acontece que as palavras me afastam da realidade. Prefiro evitá-las. Não posso soltar sequer uma antes de vesti-la com terno e gravata, cabelo penteado e barba feita, boa maquiagem, perfume, sapatos de salto alto: não posso. Que tédio viver sem nudez! Já tentei falar nu, raramente arrisco e nunca funciona: ninguém suporta a violência de uma palavra pelada. Trabalho – e aturo os colegas por sobrevivência. Desmorono de preguiça quando eles dizem “Olha… eu acho” enquanto percorrem quilômetros de raciocínios entre a primeira e a última letra o – veja: não é só a mim que a palavra afasta da realidade: aos falantes também. Realidade nem tem nome: se vira palavra, some. Ela talvez seja isso que ocorre quando trancamos os olhos no sono, até doer. Feche os olhos você também:

Mas: quando preciso, acabo por falar, as pessoas até se assustam. Descobrem que tenho voz e ficam mudas de perplexidade. Hoje a Viviane me telefonou. Disse que o marido pediu uma relação não monogâmica, ela respondeu sim como quem diz fica – e quem ficou foi ela: estragada, meio limão esquecido na geladeira há dezesseis anos. As palavras rolavam dos olhos dela: me senti obrigado a opinar: Então diga que não, Vivi: ela borrou o rímel do outro lado do telefone: eu li no escuro. E em seguida ficou calada, porque a verdade tomba qualquer verbo. Se antes de hoje ela me perguntasse que horas são?, eu daria e.xa.ta.men.te a mesma resposta: Feche os olhos você também:

Dizer uma frase me custa duas toneladas. Já o silêncio está aí para ser usado em abundância e sem esforço. Terminei a chamada com a Vivi e vim para a cama. Falar me extenua. Consigo ficar parado enquanto me movo pelo centro de tudo.

II

Sigo aqui deitado, tentando assimilar que horas são. Me levanto: ou não?


Fotografia: O 14 Bis, de Alberto Santos Dumont, durante vôo no Campo de Bagatelle – Autoria não identificada (Acervo Instituto Moreira Salles).

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