Noite e neblina

por Gabriel Themotheo
Fotografia: São Paulo Railway (Linha Tronco), Viaduto da Grota Funda, Km 28 – Marc Ferrez (Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles).

Gabriel Themotheo nasceu em Fortaleza – CE no ano de 1992. É formado em letras pela UFC. Professor, escritor e pesquisador. Possui dois livros publicados: Os Abutres Ainda Esperam o Céu Vermelho, pela editora Viseu, e Gólgota Ignota, pela editora Urutau. Cria oito gatos. Sente falta de ar. Escreve.


Quando ele a conheceu, estava ainda mais letárgico que entristecido. Caminhava sem destino, pela orla da praia, enquanto o sol quase se preparava para se pôr, e ele imediatamente lembrou da sensação que teve ao tentar compor as imagens que vinham em sua mente enquanto lia L’étranger, de Albert Camus. Acendeu um baseado, sentado de frente para as ondas, pensando em como parecia que a sua própria vida estava se esvaindo, feito espuma, e aos poucos ia sendo levada pela ressaca da praia. Na verdade, fazia tempo que não sabia o que era ser alguém. Era como se, cada vez que tentasse formular a sua própria autoimagem, só se deparasse com um vulto disforme. Uma névoa. Uma neblina. Não se reconhecia no espelho. Não soletrava as sílabas do próprio nome. Parecia que nem mesmo estava ali.

Ela sentou-se ao seu lado e pediu emprestado o seu isqueiro. Ele percebeu logo que ela estava em desespero. Nem alegre, nem triste. Apenas uma agonia melancólica e aflita nos olhos. Tudo transbordava, tudo brotava em histeria. Olhos vivos, boca seca. Na imensidão da praia. 

Deixa eu te falar, ela disse, eu não vim aqui para te pedir um isqueiro emprestado. Eu estou com uns amigos ali atrás e vários deles tem isqueiro. Estou sendo sincera contigo. Eu vim aqui porque eu sei o que está rolando nesse exato momento, e eu sei disso porque está rolando a mesma coisa comigo também. Não se assusta, eu não tô maluca. Quer dizer, talvez eu esteja. Talvez nós dois estejamos malucos, vai saber? Mas, assim, o que eu vim aqui perguntar é se eu posso ficar sentada um pouco contigo, mesmo a gente não se conhecendo, mesmo eu sendo uma estranha para você, mesmo você sendo um estranho para mim, e isso de certa forma é bizarro e assustador. Eu sinto que não devia estar fazendo isso, você pode ser um cara violento ou sei lá o quê, e você deve estar pensando o mesmo, que eu só posso ter merda na cabeça para vir puxar conversas aleatórias com um desconhecido na praia, um cara que está chapando, enquanto eu também estou chapando, o que pode ter de certo nisso, cara? Não tem certo aqui. Mas eu queria falar contigo, pelo menos durante o tempo que temos.

Ele não achou tão estranho assim. Ele estava com dificuldade de ter reações às coisas, era como se, para ele, caso alguém chegasse, apontasse uma arma para sua cabeça e dissesse tua hora chegou, vagabundo, tu vai morrer agora, ele apenas fecharia os olhos, soltaria os braços diante dos lados do próprio corpo e, num último ato passivo, abraçaria a morte, aceitando o fim. Então, apesar de não estar esperando aquilo, não podia dizer que estava esperando outra coisa. Ele não esperava coisa alguma, e quem nada espera está num pacto de aceitação com tudo. Ou com o nada. 

Mas, ao mesmo tempo em que ele se desmanchava na imensidão do azul sem fim, como se a própria linguagem aos poucos derretesse e ele sequer fosse um bicho homem, avesso à língua, ela insistia em se comunicar, como se os dois, naquele momento, fossem o oposto um do outro. E mesmo diante de toda a sua tristeza insólita, deslocou a atenção para ela, escutando.

Eu vim de muito longe, ela continuou. Eu vim de um lugar que nem existe mais. Eu não consigo parar. Eu não paro nunca, e eu acho que só vou parar quando eu morrer. Entende? Ninguém entende. Ninguém tem como entender. Eu falo, falo, falo, eu não paro de falar nunca. Eu falo com todo mundo, com todo mundo à minha volta. Amigos, amores, estranhos, cachorros, pedras, gotas, drogas, nuvens. Eu sinto que se eu parar de falar eu vou morrer. Porque, se ninguém escuta quando eu falo, imagina se eu parar de falar? Todos os meus atos nunca cessam. Eu nunca paro de fazer nada. Eu tenho medo de parar. Eu não consigo dormir à noite, porque dormir é morrer. Eu não consigo respirar direito. Eu perco o ar, eu perco o chão. Eu flutuo em uma imensidão sem fim o tempo inteiro. Você entende? Eu sinto que vou morrer a qualquer momento. Você entende? É como o piscar dos olhos. Não em relação à brevidade, mas àquela coisa de pensar que a gente pisca de um jeito involuntário, e na maior parte do tempo nem percebemos que estamos piscando. Eu sinto que vai ser assim. A morte vai vir sem que eu perceba. Como relaxar diante disso? Quando o sol explodir, a radiação vai chegar muito mais rápido do que a luz. Seremos desintegrados muito antes de saber o que nos atingiu. O campo gravitacional vai deixar de existir e os planetas que não forem engolidos pela supernova serão jogados na imensidão do universo. Eu não quero ficar falando desse tipo de assunto com você, até porque nem eu entendo tanto assim disso, mas você entende o que quero dizer? Eu não consigo parar. Eu precisava vir aqui falar com você porque eu sabia que você também estava triste. Não que todo mundo também não esteja, mas você veio aqui, intencionalmente, para manifestar isso. Você entende? Desculpa, eu me repito demais. Mas o que eu percebi, assim que te vi, é que, além de você também estar desesperado, também me escutaria, e eu sou dependente química de bons ouvintes.

Ela falou por horas. Depois ele foi para a casa dela, um bonito sobrado, com um imenso jardim, repleto de estátuas e esculturas tristes. Transaram. Não foi bom. Não esperavam que fosse. Não havia tesão, apenas uma busca por comunhão e reciprocidade que dificilmente se encontra em uma transa casual, como num ato desesperado por algo que falta a ambos. Ela contou toda a vida dela para ele. Ele escutou tudo.

Eu preciso narrar tudo, disse ela, eu preciso contar cada acontecimento da minha vida todos os dias, pois eu sinto que eles desaparecerão se eu não dizê-los. Eu sou uma paródia musical feita para decorar a fórmula de bhaskara. Se eu esquecer a minha canção, eu me esqueço. Eu não quero me esquecer. Eu deixo o meu registro em cada canto, na esperança de tatuar e marcar e pixar os lugares com tudo que me desenha no mundo. Se eu não fizer isso, eu vou desaparecer. 

Passaram a se ver todos os dias. Ele não sabia dizer não para ela. Não que fosse algo que quisesse fazer, mas também não desejava incontrolavelmente. Pelo menos sentia que, ao escutar uma pessoa que não para de falar nunca, utilizava aquela enchente de língua para preencher o vazio do seu próprio reservatório simbólico. Era como ler um livro. Uma narrativa. E ia montando, com as informações que iam sendo reveladas a ele, um romance, folhas e mais folhas inscritas dentro de si. Mesmo que soubesse que a névoa levaria. Mesmo sabendo que o seu reservatório era peneira, e que se nada fica, nem ela ficaria. Aos poucos, na contramão do efêmero, ele se permitiu ser preenchido. Ela, como uma boa dependente, lentamente tornava-se cada vez mais obcecada. Despejava uma torrente de tristezas. Chegava até mesmo a conseguir dormir. Ela não se iludia com supostas paixões ou amores. Nenhum dos dois pensava nisso. Aquilo se aproximava muito mais das demandas que cada um trazia e gritava (ou calava) um para o outro. Ela gritava, ria, chorava e se enraivecia com ele, tudo ao mesmo tempo, e quando esgotava o inesgotável, começava de novo, do começo, e era assim que os dois gozavam. Não com sexo, mas com falta e preenchimento. Um alimentando a neurose do outro. Os dois na beira de um abismo, na fronteira de si mesmos. E assim viviam. Dependentes um do outro. As línguas se enroscando, numa dança de língua, de linguagem, numa transferência de sintomas, num oceano de vazios e inteiros se engalfinhando. Se encontrando. Se bendizendo. Se maldizendo.

E nesse ínterim, nesse lapso de tempo do encontro, ela disse, num dia ameno, que o amava. Ele não disse nada, pois nada dizia. Apenas sentiu-se preenchido por mais aquele sentimento, aquele amor que lhe inscrevia, que lhe circunscrevia, e que aos poucos preenchia cada uma de suas células. Enchendo de verbo a névoa.

Viveram assim por um tempo, sem que o tempo desse conta deles.

Até o dia em que aconteceu uma coisa estranha.

O tempo passava, mas não passava de verdade. Ao mesmo tempo, parecia que tudo não parava de passar. Ela acordara de um sonho estranho que não mais lembrava. Estava sozinha. Abriu as janelas do quarto, as janelas que dão para o jardim da casa, e ali ela observou, do alto do segundo andar, o céu escuro da noite. Não havia ninguém. Gritou o nome dele, na esperança de ser escutada, mas ele não apareceu. Gritou mais duas vezes, mas nada aconteceu de novo. 

Decidiu descer as escadas. Abriu a porta da frente, caminhou pela grama verde. O ar era pesado e aquoso, como neblina. No escuro, a grama era iluminada artificialmente por alguns pequenos postes de jardim. O vento frio carregava suavemente a névoa, a luz artificial escondia as estrelas e tornava o céu uma manta perfeitamente preta. Não se via mais nada alguns metros à frente.

Gritou mais. Gritou forte. Estava entalada com uma miríade de verbos. Confundiu a silhueta dele com as estátuas e esculturas espalhadas pelo jardim. As formas estáticas dançavam ao seu redor, observando tudo. Sua solidão crescia. A angústia vinha ainda mais forte, ainda mais viva. Onde andarás, aonde foi, onde estás. Ela não sabia. Ela não lembrava nem mesmo quando foi que ele havia saído, para onde havia ido. Ele não falara nada. Claro, ele nunca fala. Como poderia? Era ela que falava o tempo inteiro. Como uma boba, olhou por detrás de cada uma das estátuas, esperando que fosse sim uma idiota, e que ele estaria, sim, ali atrás de alguma delas. 

Nada. Nada acontecia.

Ela ficou a madrugada inteira gritando o seu nome. Gritou tanto que perdeu a voz.

Aquela situação permaneceu. Ela gritava o nome dele, e, quanto mais gritava, mais perdia a própria voz. Ao perder a voz, mais ela perdia o verbo. Ao perder o verbo, mais ela perdia o tempo. Sem tempo, as recordações se dissipavam na névoa, engrossando-a mais e mais. E quanto mais grossa ela ficava, menos se via. O jardim da casa, aos poucos, era tomado pelo peso leitoso do ar, pela neblina, e não mais se via um palmo diante dos olhos. Uma imensidão oceânica e alva preenchia tudo, tomava o jardim, se aventurava pela varanda, pela sala, pelas escadas, quartos e todos os cômodos da casa. 

Até que, em desespero, ela percebeu que tudo estava tomado. Até que ela percebeu que, sem conseguir falar, tudo se desmanchava. Tudo se diluía. Tudo arrefecia.

E mesmo sem conseguir gritar, ela gritou dentro de si. Porque percebeu enfim que não lhe restava mais nada. Nem mesmo sabia se sequer existia. Porque tudo havia se espalhado na névoa da casa vazia. E porque percebeu que ali, diante dos seus olhos, estava o seu amor. 

Ele. Era ele aquela névoa. Tão etéreo quanto sempre fora.

Ele, sendo nada, era tudo.

Não havia mais nada para falar. Não havia mais nada para gritar. Não havia mais nada para escutar, amar ou para ser visto.

Ela chorou.

Ele a envolveu inteira. 


Fotografia: São Paulo Railway (Linha Tronco), Viaduto da Grota Funda, Km 28 – Marc Ferrez (Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles).

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