O cordeiro e os pecados dividindo o pão

por Milena Martins Moura
Arte: Porträtt, Anna Margareta von Haugwitz, de Matthäus Merian.

Milena Martins Moura é poeta, editora e tradutora. É autora dos livros Promessa Vazia (Multifoco, 2011), Os Oráculos dos meus Óculos (Multifoco, 2014) e A Orquestra dos Inocentes Condenados (Primata, 2021), bem como da plaquete Banquete dos Séculos (edição da autora, 2021). É editora da revista cassandra, de seu selo erótico Héstia e da Macabéa Edições. É mestre em Literatura Brasileira pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e doutoranda em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Também integra a equipe de poetas do portal Fazia Poesia e é colunista da revista Tamarina. Tem poemas e contos em portais e revistas como Jornal RelevO, Uso, Torquato, Mallarmargens, Ruído Manifesto, Lavoura, Zine Marítimas, Laudelinas, La Loba, Mormaço, Caliban, Desvario, toró, Arara, Kuruma’tá, Aboio, Arribação, Totem Pagu, Granuja (México) e Kametsa (Peru). O Cordeiro e os Pecados Dividindo o Pão (2023) é seu primeiro livro pela Aboio.


apenas um poema cuspido antes da chuva

a minha boca guarda os lutos
de muitas diásporas
vermelhas
dos pesadelos
onde os dedos
enlaçados
perfuram o tórax
a raiz dos cabelos afagada no frio
caixa craniana artéria femoral
e os ossos e os ossos

os lutos
sangrando o fundo das
gengivas
adocicados de mentira e nocivos
nocivos
os lutos

a minha boca os guarda
com gosto de água velha
que não foi colhida
para
beber
nunca das sedes saciada
para
benzer
nunca das faltas expurgada

regurgitas
a minha carne já sem sumo
de passado de velhice
corpo extremo
ungido
e proverbial

e existe luto em morte
e existe luto em vida
quem é vivo é sempre o morto
de outro vivo
morando entre os dentes
debaixo da língua

um morto à espera
de outra fome que lhe
chupe
o último sumo dos ossos


a árvore nascida do corpo de eva

mantenho os dentes
cerrados
num não sorriso

e já não me parece impossível
crer que estou aqui
eterna

passados sujos por agasalho

[meu corpo raízes
depostas na sombra
onde só germinam os que sabem carpir

meu verso mais uma morte
minha palavra mais uma súplica]

à luz que tenta entrar
eu mostro os dentes
mostro as arcadas
preparadas
para o bote

nesta eternidade
eu repouso
silente e frutífera
ao abrigo do frio
aquecida no fogo
da sombra

primeira centelha do grito

e todos os silêncios se batendo
nas paredes
e os nãos engolidos
com pão e vinho
se servem de bandeja no banquete
da sombra

onde só comem os que sabem carpir


μνήμη

são dez são nove são
cinco e quinze da
manhã

é escuro

e talvez deus esteja
afogando seus erros e
talvez os ossos dos mortos
alimentem o fogo dos vivos
mas não posso saber
no escuro

é aqui onde me deito
em sangue e
mistério
os sorrisos partidos na
queda nos
soluços nos
quases no
caos e na cólera e
no impuro
do corpo que é meu único
lugar

é aqui onde me deito e
deito meus olhos
de água e
sal
meus olhos sempre em
riste e
afiados e com fome

é escuro e estou sozinha no meu corpo

estou crua e feita de hojes
estou coberta das minhas
mortes
esfriando pele e pelos nos
passados de
mim que
devorei

soterrada das
sobras das
minhas mortes das
minhas fomes

é escuro e
talvez os ódios estejam se
apinhando nos batentes
vestindo almas em
eterna danação e
implorando em
línguas
ancestrais
pela mentira da
pureza

é escuro e estou sozinha no meu corpo

mastigando devagar todas
as faces que
à revelia
me couberam
e não foram minhas
mas dei a bater

mastigando devagar
cada migalha de
guerra e de
trégua cada
memória feroz
as asas retalhadas pelos
espinhos de amores
muito grandes
para serem
bons

é escuro e os meus olhos
sempre foram
muito fracos
minhas mãos muito
inábeis

eu rastejo

e com o corpo que é só meu
reconheço as escarpas
do caminho


Arte: Porträtt, Anna Margareta von Haugwitz, de Matthäus Merian.

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