Yvonne Miller nasceu em 1985 na Alemanha, mas prefere o calor do Nordeste brasileiro, onde mora desde 2017. Cronista e contista, tem textos publicados em várias antologias e é uma das organizadoras e coautoras da coletânea de contos cearenses Quando a maré encher (Mirada, 2021). Pela Aboio, publicou Deus criou primeiro um tatu – Crônicas da Mata (Ed. Aboio, 2023).
Fortaleza, 2019: nos fundos de uma casa antiga, um quintalzinho ensolarado. É agosto, época dos ventos. Ventos suaves que trazem um cheiro de mar, mas são barrados pelo muro alto que cerca o terreiro. Do lado de fora, os barulhos da cidade, motores, buzinas, alguma obra, vendedores ambulantes. Do lado de dentro, descalça, vestida de short de praia e biquíni, transfiro o peso de um pé a outro. Aguardo, sem saber o que me espera. À minha volta, por longos minutos, um cachimbo passa de mão em mão. São uns quatro, cinco homens Fulniô, vestidos de bermuda e camiseta, sentados no chão. A fumaça paira no ar, sobe, faz meus olhos lacrimejarem. Finalmente, o pajé se levanta devagar: com uma cuia, derrama água misturada com folhas sobre meu corpo seminu. Face, ombros, braços, tronco. Ao meu redor entoam um canto, palavras misteriosas numa língua sagrada, batidas de pés no chão. As gotas me percorrem, desenhando rastros de ervas sobre minha pele clara. Uma nuvem encobre o sol, e num arrepio fecho os olhos. Ao abri-los, silêncio.
— E essa pergunta que você carrega?
Não sei como ele soube. Mas é por isso que estou aqui, quase só pele nesse pátio de concreto. Há mais de um ano, uma mesma pergunta circula pela minha cabeça e me faz perder o sono:
— Qual é o meu lugar na luta?
O olhar profundo me atravessa. Ele cala, pondera, reacende o cachimbo. Passam-se minutos outra vez. Depois, retoma a palavra:
— Acho que você anda perdida.
— Perdida de quê?
Devagar, ele deixa escapar a fumaça pela boca e devagar faz a provocação:
— De você mesma. Não é?
E antes que eu possa dizer qualquer coisa, continua:
— Precisa ir à floresta. Se conectar com a natureza. Assim, você vai se encontrar e encontrar sua resposta.
Cinco meses mais tarde, eu fui.
Arte: Landscape in Brazil, de Joaquim José da França Júnior.