Safo em Boeotia

por Menahem Wrona
Fotografia: Vista do Corcovado – Marc Ferrez (Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles).

Menahem Wrona nasceu a tempo de despedir-se do milênio gregoriano, no inverno de 1999. Cresceu em Itu, São Paulo, cidade onde os objetos perdem a escala, e há de se ter ouvidos grandes. Aos dez anos, saiu da escola e entrou no vazio – nunca se recuperou. Desformado, mudou-se para Berlim aos dezoito anos para seguir uma graduação em ‘Humanidades, Artes, e Pensamento Social’, e lá plantou flores na lápide de poetas, filósofos, místicos, e pintores. Mestrando em Estudos Clássicos pela Universidade de Coimbra, fundou no Porto o centro El Aleph, um programa de residências artísticas e investigação filosófica, dedicado ao entrelaçamento de sabedorias originárias brasileiras, conhecimentos ancestrais, e o mundo considerado clássico.


Safo em Boeotia

Multifloreado teus olhos,
O silêncio de semente
E sêmen, a brotar do mar fundo
Multifloreado, teus olhos verdes.

(Flor de Narciso, flor…
Semente de reflexo
E horizonte límpido,
Escuta-se no nome o eco,
Desejo branco de tornar-se
Flor de Narciso.)

Multifloreado teu beijo,
O veneno do instante-agora
Esquecido por um homem,
E nua, ninfa e silente a lua
Curando a cor.

Multifloreado teus medos.
Néctar prateado sob o jardim da curva
Entre os entes, e a verdade em teu rosto de semente
Vê-se com o toque na noite
Multifloreando a flor.


De Onde

De onde então enraízam-se os corpos
A chegar?
Vim da terra, minha mãe,
Vim do barro. 
Átomos e prótons de céu,
Pulmão de nuvens inexplicando
O martírio de saber tão pouco
E entender tanto:
A aurora chove na esquina da alma
Sob a casa d’onde vou dormir.

Para onde eternizam-se os corpos
A morrer?
Se fizemos caixas de madeira
Para protestar o retorno ao que somos.
Não quero pedras que radiem: 
Quero o vôo, ser comido pelo corvo,
E uma manhã que raie igual.

Direi que as máquinas aqui eram cegas,
Marchavam a natureza morta:
Campo elétrico de figueiras de relâmpago 
E o mar das cidades caladas no grito das buzinas
E o cais dos olhos dos que amo.

De onde então…


Levante (Ode ao Penúltimo Dia)

Fecho os olhos com o silêncio de Paris ruir.
Antes veio Júpiter. Antes veio a relva.
Selva de corpos e mármore…
O céu é inca, o céu é grego.
No parque a fonte espalha veludo aos ares
E uma moral se faz, cobrindo o corpo morto de um Deus.

Silenciosa, a noite comete o crime de nascer.
Silenciosa, a noite dá-se no século.
Silenciosa, a noite secular.

Pássaro na noite,
O corvo come a pomba.
Pássaro na noite:
A noite sabe a noite.
Minha tristeza vai embora
Como uma folha de louro levada às pressas
No bico de uma andorinha.

De uma civilização antiga
A lua se eleva, os postes altos da cidade
Como uma cratera escura se anunciam:
Vitrines modernas dos dias
Em que o último antropólogo será sol.
Jardim minguante da era
Paisagem selvagem da Nossa Dama,
Irreal e límpido,
Ossos na floresta do mistério;
Os entes grandes,
O pequeno humano.

Levante, vento…
Vento levante de tudo que hoje vejo…
Tenha misericórdia com os nossos palácios.
Tenha calma com as nossas mesquitas,
Tenha ouvidos para o que contou o shofar,
O movimento inebriado da espécie,
Levante das fronteiras do sonho.

De mim… Não há de ter misericórdia.
Fui feliz. Logo de menino fui ensinado
Que ao despertar da cama
Abre-se os olhos,
E aprendi a decência humana de fechá-los
Ao deitar.

Mas e toda essa gente, de quem sou pai?
Mas e todas essas ruas, de quem sou pomba?
Todos esses amores, de quem sou deus.

Fecho o silêncio com os olhos;
Nasce o sol.
E a cidade está vazia.


Fotografia: Vista do Corcovado – Marc Ferrez (Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles).

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