enquanto dormem os meninos

por Gabriel Cruz Lima
imagem de georgia ayrosa para texto de gabriel cruz lima. folhetim na ordem do dia, capítulo i - enquanto dormem os meninos

Gabriel Cruz Lima é jornalista pela Faculdade Cásper Líbero e graduando em Letras pela Universidade de São Paulo. É autor de “O Último Romântico” (BAR Editora, 2020). Assim como o São Paulo Futebol Clube, não tem nenhuma premiação expressiva na última década. Entretanto, a torcida permanece.


Sonhei com isso. Essa é a explicação mais lógica. Lídia disse não:

“Acho que você está querendo salvar o mundo”.

Com o sol do meio dia invadindo a fresta da janela, ainda sem levantar, coloquei os dedos para defesa. Argumentei: não, não é bem assim, você não entende o que quero dizer com literatura. É a terceira vez que ela para de falar comigo esse mês. Jajá passa.

Uma rampa de cimento esplanada e o céu azul bem aberto. Um anjo de nove dedos anuncia: o projeto é simples, companheiro. A gente voando por um Brasil em chamas, uma língua presa fazendo liquidificador no meu ouvido: Você é o escolhido para narrar sobre o momento anterior à falência total dos órgãos, explorar de maneira sensível, com algum toque contraditório, o descaminho ao descalabro. Do alto das asas da entidade, vejo um labirinto. Não existem rotas de fuga para o monstro.

Aquela história de certa manhã alguém despertar de sonhos intranquilos aconteceu comigo, tento explicar para Lídia. Já estava acordado rolando na cama, mas não desligo o despertador a tocar, Deus ajuda quem cedo madruga, mentalizo, e assim assimilo o segundo toque, colocado por mim à guisa do desemprego, método preventivo de sonecas diurnas. Anuncio para Lídia meu novo livro e saio em direção à cozinha. Gosto de bananas no desjejum.

“Acho que você está querendo salvar o mundo”.

Tentei falar o contrário. Disse para a gata da ancestralidade humana versus os desafios propostos pelo sonhar, do chamado à aventura. Pergunto se ela não sabe daquela previsão do Touro Sentado em que lhe foi anunciada a invasão do terreno sagrado por meios oníricos, flechas da resistência indígena no meio oeste atravessando cocares, cavalos selvagens dos Apalaches até os elevadores de São Paulo. Ou quando um imperador romano, se era mesmo um imperador, sonhou a conquista de todo o território do mundo, até onde a vista pudesse alcançar, dizem que o ditado toda boca vai a Roma vem daí, tento colocar para os ouvidos surdos. O que quero dizer é que desde o tempo antigo, todas essas decisões de grandes homens passaram também pelo acolhimento das convocações de seus interiores. Não há provas cabíveis para preferir a vigília ao sonho em matéria de arte, Dalí sabia disso. E o que Lula dizia, tento contextualizar, era dessa ordem de grandeza, convocação com pouca margem para desvio, coisas binárias, ou corre da briga, ou briga essa briga. 

“Acho que você está querendo salvar o mundo.”

Bebo uma xícara de café e como minha banana enquanto meus dedos continuam a argumentação. Advogo que precisamos nos reabilitar com essa nossa dimensão para compreender verdadeiramente o significado humano. As pinturas rupestres, antes de tudo, marcam a cisão entre a realidade apreensível a olho nu e a capacidade de recombinação cognitiva. É a partir do sonho que nasce também o amor moderno, a noção de indivíduo, coisas incertas não sabidas por ela. Mesmo assim ganho uma represália.

“…”

Conheço essa recusa a torcer o braço. Digo isso do alto da certeza de que ela precisa ser mais compreensiva. É a terceira vez que ela para de falar comigo esse mês. Jajá passa. Coloco no twitter um trecho de a valsa dos adeuses, livro que não li, mas me parece sinal de término solene, que também é sinal de solteirice disposta. Ainda digerindo a queimação do cafézinho no gastro, passo horas batendo papo com outra ex inominável sobre a sensibilidade daquele trecho e da Poesia com P maiúsculo, sensibilidade essa também do Wong Kar-Wai, segundo ela comparava. Gabi e eu elencamos a nostalgia pictórica como um dos temas dele, palavras muito próximas de ver filme junto e da saudade daquela tarde de domingo, de vamos nos ver de novo em breve. Abrevio o discurso na nostalgia. Respeito meu enlutamento. Ainda gosto muito de Lídia.

Antes de começar a escrever, preciso realinhar os chakras. A água, elemento cuja hecceidade é a fruição das correntes invisíveis, costuma limpar os poros físicos e espirituais. Fico olhando para o nosso chuveiro, pensando se vale a pena o banho ou não. Talvez fosse bom ter de colo um demônio ou dois do bate-boca pela manhã para avivar as ideias fascistas. Em média, trata-se de violência de ordem patriarcal, eu acho. Então, deixa os garotos brincarem ao pé do ouvido, ideias tortas sobre tudo aquilo que poderia ser dito para Lídia, e não foi.

Ou não. Porque esse chuveiro me lembra ela e ela me lembra coisas boas e coisas boas me ajudam a escrever. Explico: não que o fascismo seja bom, eu que preciso estar bem, Entro nessa ducha de piscina, uma rajada nas costas, outra na cara, sem música mp3 e sem hellou eletrônico no banho, pronto para começar a missão: vou escrever sobre o fascismo. 

O relógio ticando duas horas de sol a pino e eu com a toalha enrolada no corpo. 

Sento na mesma mesa da cozinha onde deixei a casca de banana, puto da desatenção com a bagunça. Vamos aí, digo para mim, abro meu caderno. À despeito do que ela pensa e sente, vou tocar o barco. O sentido da vida é pra frente, costuma dizer minha mãe. 

Tenho um montão de material escolar, tralhas da época de faculdade, memes do dever. Eu passava na papelaria para me convencer a escrever, partindo do pressuposto da organização como uma espécie de formadora de caráter para a lida com o texto. Se eu tivesse uma agenda, uma régua, uns adesivos, corretivo, canetas de várias cores, guache, tela acrílica, papel crepom, selofane, só o necessário, ou muito mais do que o necessário, sairia o texto, composto de horas infinitas que a gente não diz nada. Texto do compromisso com Luiz Inácio.

Aberto o caderno, aponto um lápis, porque acredito que os computadores podem roubar as minhas ideias. Pego também caneta, desenho na borracha. Faço um coração, penso em escrever Lídia, mas sou um homem de afetos difíceis e não cedo ao populismo desse melodrama. E vou pensando qual seria o ponto inicial para falar sobre o fascimo e porque me parece óbvio colocar 2013 como caudilho dos milicos. 

Mas será isso mesmo? Mando mensagem para minha mãe, com a desculpa de saber como anda Timbira. Apesar da chuva, ele pegou só um resfriadinho, seu gato está bem. Pergunto de volta. Ela pigarreia do outro lado da linha, mas fico com medo de perguntar se ela ainda está saindo com o Márcio Vítor. Tudo vai indo. Pode ficar tranquilo, filho. 

Ótimo motivo para retomar o texto. Ainda sem colocar o lápis no papel, bolo um esquema mental, tentando entender onde começa e onde termina a cauda do fascismo. Coisa essa que não sei, mas intuo. 

A começar pelos anos recentes. Hoje é um dia de março de 2021, tudo certo como dois e dois são cinco. 

Recordo de todas as passeatas e do mal-estar no mundo. Contra a redução da maioridade penal, contra algum projeto de lei sobre criminalização do aborto, contra a reforma da educação, contra os golpistas parte I – o ataque do vice, contra os golpistas parte II- a lava- jato é uma farsa. Com exceção da marcha da maconha, todas as propostas desse período em específico foram pautadas de maneira noturna, tudo aquilo que não queremos, em vez de tudo aquilo que queremos de fato. Foi isso, com os anos do meu partido de coração no poder, a gente perdeu a capacidade de sonhar em detrimento do pragmatismo. 

E ausência de um sonho de Brasil gostoso dá vazão ao pesadelo de Mourão e cia. Porque ao abrirmos mão da veia utópica, espécie de terceiro olho da esfera pública, ficamos atados à burocracia, a um sistema de maldade cuja finalidade única é otimizar recursos e destrinchar números. Na minha cabeça, é como se a nossa esquerda estivesse pensando apenas em termos matemáticos, e não tanto supramentais, por assim dizer, guiados por aquele lá engravatados em cubículos, tolhidos da capacidade de andar com os grandes. Kekulé descobriu o benzeno a partir de uma visão com o ourobouros, isso é lindo e ao mesmo tempo distante dessas pessoas. Falei para Lídia, devemos nos reconciliar com o sonho. Para ter um projeto democrático inclusivo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos, hasta siempre João Cabral, em que a imaginação bem estruturada combata essa eficiência numérica da ditadura militar brasileira. Eles excluem, hoje, porque têm um teto bem estabelecido do que se pode ou não gastar e para quê. Neoliberalismo.

Fato, essa imaginação anda às avessas no sistema brasileiro. Vi, mesmo na época mais à esquerda do Brasil, muita gente indo embora da universidade. Soliane é o exemplo cabal de como podemos destruir sonhos.. De nada serve a expansão de cotas se ela não vem acompanhada de permanência estudantil. Mas não tem dinheiro para todo mundo, diziam os reitores. Contrai dívida, revoga alguma medida, taxa iate, barco, helicóptero, cueca importada. O que é mais importante, que se dê o direito de estudar ou que se exclua parte da população negra por meio dessa maldade geométrica do fascismo neoliberal?

Reli esse parágrafo e por ânsia de chegar aos finalmentes, talvez tenha deixado escapar a questão da efetividade que me guia na lida com meu livro sobre o fascio. Os números não veem efetividade, dizendo assim, de coração mesmo.

Seria melhor se o Bolsonaro tivesse sobrevivido à facada?

Imagino que sim e que não. Sim, porque com o corpo do anticristo em marcha conseguiríamos nos mobilizar de maneira mais factível. A história da humanidade elege inimigos e os caça. Dessa forma, seria melhor se ele não tivesse ido para a vala com o ataque de Adélio Bispo. Ao dar esqueleto e voz para o projeto do fascismo, seria mais fácil combatê-lo, achar uma resposta para os problemas nacionais por meio do expurgo.

Outro ponto em que a morte do Bolsonaro serve como nervo do fascismo tem ordenação mística. O grão mestre bruxo do ocultismo é a figura central do feitiço, sendo ele, segundo o Guia Sumério Diastrático de Zenon, o aleph das energias ao redor. Com a queda do ex-paraquedista na lâmina, é como se uma bexiga de festa infantil com sanguessugas tivesse estourado e contaminado o Brasil. 

Daí a importância da reconciliação com os saberes ancestrais, se os bruxos desse tipo de magia oferecem pó de ouro aos céus, nós buscamos a iluminação em outro terreno, combatendo dentro de nossos corações com as espadas de Jorge e os machados de Xangô, toda essa baboseira que está espalhada pelo ar, que deixa a água na boca de cada um mais metálica, com gosto de chumbo e sangue.

Também não somos santos apenas, podemos ser mais e assumir nosso lado menos virtuoso. Por questões psicológicas, também acho que a vida de Bolsonaro seria mais efetiva se comparada ao que temos hoje. O desejo não conhece moral e, ao termos uma figura de ódio coletivo, estaríamos antecipadamente desculpados pela nossa vazão. Como quem pega um pão na padaria e deixa velinhas sentarem nos lugares ocupados, mais felizes por poder encarnar toda nossa vontade de detestar alguém em alguém de fato: pele, osso, essas coisas. 

Porque o golpe militar em curso se calca também na memória de Bolsonaro. Sob a égide de que era isso que o Capitão faria, passa o boi e passa a boiada. Ele funciona como uma espécie de fantasma encarnado a cada canetada do Mourão. Deus acima de tudo, Bolsonaro guardando por todos. Com ele vivo poderíamos apontar, é culpa do presidente. Hoje não.

Dessa forma, Mourão e o vice Eduardo, apesar das tentativas de suavizar a visão bélica, mostram nesse primeiro ano de mandato a que vieram, de uma maneira clássica e por isso tão pouco drástica. Depois do Projeto de Lei das Armas, instituído logo após o atentado cívico do primeiro de maio de 2020, temos um exército paralelo armado até o caroço pronto para contra-atacar a população. Gosto do termo contra-atacar a população. Já não se tem nem mais a vergonha de colocar o fascismo em termos de defesa de um inimigo externo ou de uma ideologia alheia aos desmandos dos milicos. O problema da guerra civil já está na língua deles. 

E esse parlez-vous dos militares encontraria mais resistência na figura de Moro. Acredito que a sanha do judiciário de Curitiba, além de prender Lulinha, era com a classe política de maneira geral, não apenas com um nome. Logo, se Bolsonaro saísse muito das rédeas do aceitável, o paladino de toga se oporia, e aí todo aquele bafafá, força tarefa de não sei onde investigando o então deputado Jair, até que, em uma jogada de mestre, Moro sairia fortalecido para as eleições vindouras. Como ministro do governo militar, no entanto, o que ocorre é diferente. Em uma entrevista para a Folha de S. Paulo, ele afirmou categoricamente: “Os militares estão restabelecendo a ordem no Brasil, mesmo que a certo custo”. Tenho a certeza, não viveremos uma eleição nos próximos anos. Saudades da época dos acordos com o supremo, com tudo.

Se de um lado a leninência do magistério é afetada pela ausência do réu, a arte segue outro caminho, pior ou melhor, não sei, mas muito lugar comum. O novo golpe militar passa pelo desacerto estético do combate, flerte com um passado cuja resposta formatada já não serve. É como se ao emular a ditadura militar, no nosso presente, não houvesse um mecanismo sensível para reagir ao estado de coisas que nos encontramos. Eu imaginava outra coisa. O Geraldo Vandré caminhando e cantando e seguindo a canção voltou ao trending topic, o que muito me entristece e acho pouco efetivo. Repito, com a presença viva do Messias, outros hinos, formas de se combater, surgiriam. Ou ainda, a mobilização popular voltaria os olhos para artistas que eu classifico como suprapolíticos, cuja existência, por si só, afeta a percepção social. Pablo Vittar, Belo, Adriana Calcanhoto, Emicida e tudo o mais de novo encontraria vocalidade nesse Brasil paralelo. Precisamos de outra forma sensível de nos habilitarmos com o mundo. Meu sonho, acredito, vem desse caldeirão que vivi e senti. 

Mas esse não é o texto. Essas são especulações sociais, fruição intelectual simples. Ficção literária é personagem.

Por um lado, penso na minha amiga, Soliane, lá do início do curso de Letras, vítima da ausência de políticas públicas. Mulher, negra, lésbica, dependente emocional, não permaneceu dentro do ensino clássico.

Por outro, penso em um panorama mais amplo, em que os autores se utilizam apenas de personagens brancas, homens, escritores, jornalistas e professores para ilustrar os sentimentos postos. Para isso, eu digo não.

Olhando essas duas realidades, enxergo o problema da representatividade como um enrosco à própria literatura. Não se podem contar as mesmas histórias sempre, fato. Por isso, tomo emprestadas algumas características da minha amiga para ilustrar também de que maneira o racismo é indissociável dessa era de camisas e togas negras.

Encontro estofo no cânone, claro. Nem só de produções representativas vive a ética literária. Não era necessário à Carson Mcculers que ela fosse um médico do sul dos E.UA, à Hilda Hilst que ela fosse uma garotinha devassa de oito anos de idade, nem ao Flaubert que ele fosse uma madame adúltera. Por que não eu? 

Assim, meu livro sobre o fascismo começará por ela, para ela. Amanhã, ao acordar mais cedo, dedicarei meu livro sobre o fascismo à Soliane, in memoriam. E para Lídia, a incompreensível.


Da redação: este é o primeiro de uma série de 16 textos do autor Gabriel Cruz Lima. Durante as próximas oito semanas, a Aboio publicará os capítulos seguintes, na melhor tradição do folhetim, toda sexta-feira, às 19h.

As ilustrações são de Geórgia Ayrosa.

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